Durante mais de quinhentos anos, os casamentos não se faziam de acordo com a atração sexual recíproca. Eles mais se realizavam por interesses econômicos ou familiares. Entre os mais pobres, o matrimônio ou a ligação consensual era uma forma de organizar o trabalho agrário. Não há dúvidas de que o labor incessante e árduo não deixasse muito espaço para a paixão sexual. Sabe-se que entre casais, as formas de afeição física tradicional – beijos e carícias – eram raridade. Para os homens, contudo, as chances de manter ligações extra-conjugais, eram muitas
Mas as mudanças que o século e a “vida moderna” causaram, por sua vez, reações. Uma sólida barreira feita de opiniões de juristas, médicos e da própria opinião pública, reagia a tudo o que pudesse ferir as instituições básicas da sociedade, sobretudo a imagem da família e do casamento. Não havia felicidade possível fora deles: marido e mulher se transformavam em papai e mamãe. O amor conjugal era feito de procriação. Apenas. Nada de paixões infecundas, de amores romanescos, de sentimentos fora de controle. A prole legítima era o único projeto saudável. Seu cuidado, a única meta: “as moças, naquele tempo, eram educadas para casar e ser dona de casa, educar os filhos muito bem era responsabilidade das mulheres”. A tríade: amor, saúde e felicidade passam a coincidir nos discursos sobre a família enquanto os “amores de sofrimento” eram identificados com doença. Paixões levavam a crimes hediondos que enchiam as manchetes dos jornais. Contra elas, se constrói uma afetividade conjugal cheia de normas, cheia de regras, onde não havia lugar para o erotismo.
O que se assistiu ao longo dos tempos, foi uma longa evolução que levou da proibição do prazer ao direito ao prazer. Fomos dos manuais de confessor – livrinhos que condenavam toda a forma de erotismo – que tudo interditavam aos casamentos arranjados, policiados, acompanhados, passo a passo por familiares zelosos. E destes, ao impacto das revoluções que ao final dos anos 60 exportaram mundo afora lemas do tipo “Ereção, insurreição” ou “amai-vos uns sobre os outros”, sem contar o movimento hippy com o lema de “Paz e Amor”. Desde então, o amor e o prazer se tornaram obrigatórios. O interdito se inverteu. Impôs-se a ditadura do orgasmo forçado. O erotismo entrou no território da proeza e o prazer tão longamente reprimido tornou-se prioridade absoluta, quase que esmagando o casamento e o sentimento. Passou-se do afrodisíaco à base de plantas para o sexo com receita médica, graças ao Viagra. Passou-se da dominação patriarcal à liberação da mulher.
O fim do século XX inventou um narcisismo coletivo, uma estética insólita do amor de si. A sexualidade instituiu-se como prática corrente, pior, ela consagrou-se como condição fundamental para as relações sociais. Banalizada, estereotipada, ela invade o quotidiano através da televisão, do cinema, da média, explodindo num todo – o corpo nu, na maior das vezes, – ou em pedaços – pernas, costas, seios e nádegas. Nas praias, nas ruas, nos estádios ou nas salas de ginástica ela exerce uma ditadura permanente, humilhando e afetando os que não se dobram ao seu império. O erotismo passou a designar, segundo os dicionários, “estado de excitação sexual” e tudo que ao sexo está relacionado. Trocou-se amor por sexo. A imagem erotizada está hoje presente em toda a parte. Vídeos, DVDs, sites de Internet, televisão aberta ou a cabo, bancas de jornais. E o tratamento que estas imagens fazem da sexualidade é que lhes dão sua eficácia. Diferentemente de nossos antepassados que viam erotismo no que estava oculto, o erotismo, hoje, precisa das imagens para ser eficiente. Passamos, em pouco tempo, do amadorismo de nossos avós, – amadorismo ditado por inúmeros constrangimentos de ordem religiosa, social e cultural – ao profissionalismo de nossos netos, profissionalismo modelado pela obrigação do prazer. Num jogo de palavras com o filósofo Michel Foucault, diria que passamos de uma arte erótica onde tudo era proibido, para uma ciência erótica onde o prazer é uma imposição. O erótico, graças à mídia e à imagem, tem que ter competências: seios imensos e nádegas de silicone, boca de pato Donald, bíceps, sexo desmesurado. Seus personagens são o metrossexual e a Barbie. O espectador não está mais na frente de uma cena, mas de uma performance técnica. Se antes o erotismo era uma metáfora para o amor, não uma representação evidente ou direta do sentimento, mas, uma forma condensada, enigmática, sugerida do sentimento amoroso, ele passou a um exercício com regras próprias excludentes. – Mary del Priore.
“O Beijo”, de Auguste Rodin.
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