“Mataram um estudante: podia ser um filho seu”

O texto a seguir foi extraído do livro “História do Crime no Brasil”, que será lançado em 2015. A obra, organizada pelos historiadores Mary del Priore e Gian Carlo, contará com a participação de diferentes autores. Confira, em primeira mão, um trecho do artigo de Angélica Müller sobre a morte do estudante secundarista Edson Luís em 1968.

Por Angélica Müller.

O ano de 1968 já prometia ser repleto de manifestações alavancadas principalmente pelo movimento estudantil (ME) que, desde a implantação do golpe civil-militar, em 1964, foi o principal ator na resistência contra o regime em vigor. Logo depois do golpe,a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) localizada na Praia do Flamengo, 132, na cidade Rio de Janeiro, foi incendiada e a entidade foi colocada na ilegalidade. Entretanto, os estudantes trataram de se reorganizar enquanto movimento mesmo sem sua sede histórica adquirida durante o Estado Novo. Foi assim que o restaurante estudantil Calabouço (local que outrora abrigara uma prisão), local que também sediava a União Metropolitana de Estudantes (UME), passou a ser o foco de concentrações e manifestações estudantis. Elinor Brito, presidente da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço (FUEC) em 1968, recorda o início das manifestações que ocorreram ainda no ano de 1965:

Queríamos a melhoria da comida servida. Passamos na época o filme O encouraçado de Potemkin e aquela revolta dos marinheiros contra a comida podre nos impressionou muito. Um dia, quando nos serviram peixe podre, não aguentamos e começamos, em sinal de protesto, a empilhar as bandejas, rejeitando a comida. Chamaram a polícia para conter o protesto e a recebemos com projéteis improvisados: pedaços de peixe podre. A polícia teve que recuar horrorizada. Foi um sucesso.”

Mesmo com a constante vigilância dos órgãos de informação como o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), os estudantes protestavam, entre outras bandeiras, pelamelhoria na qualidade da comida, contra o aumento do seu preço,contra a instalação física adversa do restaurante citado. Bernardo Joffily, vice-presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES) naquele ano, relembra o cotidiano do Calabouço:

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“Ficava todo mundo comendo – não eram 10 mil ao mesmo tempo, mas eram milhares de estudantes naquele galpão enorme – e, de repente, um estudante subia na cadeira e dizia: ‘Companheiros, acabo de descobrir uma barata aqui na sopa, no meu feijão, na minha bandeja.’ E aí todo mundo batia com os garfos. Já era combinado, todo mundo já sabia, não precisava ninguém explicar. Todos batiam com os garfos nas bandejas, faziam aquela barulhada imensa em protesto contra a barata descoberta. E havia a luta para defender o restaurante, que era mais séria”.

No início do ano de 1968, várias manifestações aconteceram. Em 28 de março, mais uma estava programada,organizada pela FUEC e, desta vez, a polícia invadiu o restaurante e acabou matando um estudante: Edson Luís, a primeira grande vítima do regime ditatorial como lembra Vladimir Palmeira: “Uma primeira vítima mortal. Nós já tínhamos dito que um dia ia morrer estudante, sabíamos que ia morrer. Havia uma fronteira da polícia, e até onde ela chegaria? Um dia chegaria isso. Foi um clima de grande indignação.”

Com receio de que a polícia sumisse com o corpo, os próprios estudantes o levaram para a Santa Casa, na Rua da Misericórdia. Ali, o médico Luís Carlos Sá Fortes Pinheiro anunciou que o estudante estava morto. Seus colegas, em seguida, levaram-no para o saguão da Assembleia Legislativa, local anteriormente previsto para o término da manifestação.E de lá o corpo só saiu para ser enterrado. Até mesmo a autópsia, que deveria ser realizada no Instituto Médico Legal, foi realizada na Assembleia pelos peritos e na presença do Secretário Estadual de Saúde. Como afirmou a socióloga Maria Ribeiro Valle, a “batalha” pelo corpo do estudante pareceu até mesmo antecipar a prática da ditadura, que nos anos posteriores se tornou comum, de dar sumiço aos corpos de suas vítimas.

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Os estudantes organizaram um “Comando Informal do Calabouço” constituído das suas entidades representativas, parlamentares e intelectuais/artistas. Segundo a lembrança de Vladimir Palmeira, entre os nomes escolhidos estavam José Américo Pessanha – professor da Faculdade Nacional de Filosofia, pelos professores; Hélio Pellegrino psicanalista e escritor, representando os intelectuais; e o ex-senador Marcelo Allencar (que teve seus direitos cassados em 1969), pelos políticos.

É interessante observar que o ME teve ciência do potencial que uma morte possuía para servir de arma contra o regime. Os estudantes ali presentes apoderaram-se do corpo do colega secundarista, cientes de que, mais do que a prova cabal do crime, ele se tornaria um símbolo da luta travada.A utilização da “Casa do Povo” e dos símbolos nacionais ajudaram na criação de um funeral digno de um herói nacional.Tanto assim, que organizaram-se para divulgar amplamente a morte de Edson Luís.

EdsonLuísEdsonLuiz.Câmara.velório

 

Imagens do enterro e velório de Edson Luís (jornais da época).

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  1. Ana Santos

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