Por Natania Nogueira.
Se mergulharmos nas páginas dos periódicos que circulavam nas várias regiões do Brasil entre finais do século XIX e medos do século XX, corremos o risco de nos deparar com um passado que muito diferente daquele que idealizamos quando estudamos nos livros de História. Neles podemos encontrar pequenos fragmentos da vida cotidiana narrados sob a ótica de editores e redatores comprometidos com os valores da civilidade, mas que deixam pistas sobre o cotidiano das cidades e da zona rural de grandes e pequenos municípios.
Da a gente simples, analfabeta e excluída encontramos registros de sua passagem nos jornais, ora vitimados por infortúnios, ora acusados de macular a sociedade civilizada com atos de violência. Relatos de crimes, acidentes e de violências diversas nos trazem informações sobre hábitos e costumes de uma sociedade que constrói sua memória a partir de valores que nem sempre eram colocados em prática.
Os excluídos, os pobres, os transgressores e as mulheres dos grupos populares se tornaram figurantes e protagonistas de um conjunto de histórias que nos auxilia a montar o grande mosaico que é a História da gente simples. Isso se aplica muito bem às Minas Gerais, onde se cultivavam os valores da família, valores que nem sempre eram respeitados e reproduzidos por toda sociedade.
Senhores distintos, chefes de família, figuras proeminentes da sociedade mantinham relações com outras mulheres ou mesmo possuíam outra família não oficial. A tradicional família mineira esconde em seus baús suas mazelas e sua hipocrisia. Não raro um fazendeiro trazia para sua casa uma criança para ser criada pela esposa. Explicação? Nenhuma! Não cabia à mulher questionar o marido e, quando o fazia, corria o risco de ser punida.
Uma jovem esposa, de origem humilde, traída e humilhada comete suicídio na primeira década do século XX. Preferível abrir mão da vida do que do casamento? O marido arrependido e sob o peso do julgamento de familiares e amigos procura o mesmo destino. A sociedade tenta aliviar o sofrimento com mais sofrimento. A emenda saiu pior do que o soneto.
Nos jornais da época havia casos de paixões que terminavam em crimes passionais. A culpa? Da mulher, claro! O homem desonrado precisava livrar-se da mácula da traição com sangue. Mas o que dizer do caso da esposa que planeja com os filhos a morte do marido abusivo. Crime bárbaro! Mas bárbaro era também o abuso sofrido pela família. E os relatos de abusos eram muitos.
A esposa mata o marido a pancadas enquanto dorme. As razões, não são conhecidas pelo público que lê o jornal. O importante é que a esposa foi presa e deixa de ser um risco à boa sociedade. Uma mulher que mata o marido? Intolerável! As mulheres podiam ser vítimas mas não podiam ser algozes.
Crianças e mulheres eram as principais vítimas da violência. Mulheres pobres e desamparadas cometiam aborto ou infanticídio para esconderem sua condição da família. Notícias de crianças mortas sem motivo aparente e de forma violenta também chegavam aos leitores. A mãe atacada em casa, na ausência do marido, tem o filho de apenas três anos de idade degolado, mortalmente ferida não consegue entregar a polícia o nome do criminoso.
Crianças eram abandonadas à própria sorte, ainda bebês, e despertavam o sentimento de revolta da sociedade, expressa pelos jornais. Brancas, negras ou mulatas podiam ser encontradas nas portas de casas ou igrejas, em caixas, na beira de estradas, enroladas em trapos. Vez ou outra encontrava-se uma reportagem indignada denunciando maus tratos de menores. No entanto, medidas efetivas para proteção da infância estavam longe de serem tomadas. Essas mesmas crianças, mais tarde, poderiam ser acusadas de desordeiras. Algumas, que cometiam pequenos delitos para sobreviverem eram rotuladas como “marginais”, situação não muito diferente daquela que se enfrenta hoje, em praticamente todo o país.
Em jornais de Minas Gerais pode-se encontrar todo tipo de relato envolvendo a gente simples, mas os casos de violência contra crianças e mulheres chamam a atenção. Eles nos mostram que o ideal de civilidade muitas vezes não passava disso, um ideal e não atingia a todas as camadas da sociedade. Os incivilizados eram os rudes, a gente do povo tomada pelos maus hábitos, aquele que não frequentava os espaços reservados para as famílias tradicionais.
Por outro lado, mesmo dentro da tradição havia incivilizada. Embora fossem abafados, escândalos envolvendo pessoas públicas podiam aflorar uma vez ou outra, rompendo com fina camada de disfarce que expunha a falsa moral escondida por detrás de um sobrenome pomposo. No mais, é possível perceber que depois de mais de um século ainda há permanências. Muitas dessas denúncias poderiam ser transpostas para os dias atuais, onde práticas abusivas permanecem ainda como temas recorrentes.
Ilustração do abandono de uma criança na Roda dos Expostos, século XIX – Disponível em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/orfao-na-colonia,