Cachorras ou princesas?

Se o amor se quer eterno, o sexo é errático. A novidade é que, hoje, as mulheres pensam assim. Antes, não. Num livro notável, A cabeça do brasileiro, Alberto Almeida definiu o que mudou e para quem. A desigualdade de mentalidade em relação ao sexo refere-se às diferenças de geração, mas também à escolaridade. Há cinquenta anos, os homens começavam a vida sexual com prostitutas, pois a virgindade da futura esposa era o que havia de mais importante, para ele e para ela. Hoje, uma moça de vinte anos ainda virgem tende a ser ridicularizada pelos colegas. A idade da primeira relação sexual para mulheres despencou de 22 anos, em 1995, para 15 anos atualmente. Quanto ao sexo oral em mulheres, 88% dos homens entre 45 e 60 anos são contra. Entre os jovens, 50%, de 18 a 24 anos, são a favor. Em relação à masturbação feminina, no primeiro grupo, 81% são contra; no segundo, 51% são a favor. O homossexualismo feminino ainda incomoda: entre os mais velhos, 93% são contra e, entre os jovens, 84%.

Tudo indica, porém, que o século XXI será um grande laboratório amoroso. O desafio será fazer o amor durar e, com ele, o desejo. As experiências poliamorosas revelam que somos capazes de amar mais do que uma pessoa ao longo da vida. A vida privada vai tomando espaço à vida pública e nos ensinando a cultivar sensibilidades novas. E, na fragilidade do efêmero, somos convidados a elaborar nossas respostas.

Enquanto elas não vêm, as brasileiras oscilam entre vários modelos, embora um modelo binário se destaque: o que separa santas e diabas, liberadas e tradicionalistas, belas e feras. Sim: “Mulher adora sexo!”. A revista TPM resolveu quebrar o tabu e contar histórias: “eu gosto de variedade mesmo”, afirma uma entrevistada. Mais e mais, mulheres se envolvem, sem culpa, com mais de um parceiro. Fisgadas pelos sex shops, elas são 65% da clientela de brinquedinhos eróticos e companhia, além de 50% de assinantes do canal de conteúdo erótico Sexy Hot, em 2011. Em um blog anônimo, o 100 Homens, a jornalista Nádia Lapa resolveu contar suas “transas”: “O número redondo e o trocadilho chamam a atenção, mas nunca me obriguei a transar só para atualizar o blog”, explica-se.

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Parece o paraíso, mas não é. Se não ficar firme com alguém, vira “biscate”. O blog de Nádia recebeu tantos comentários agressivos que ela desistiu do projeto e entrou em depressão. Figuras públicas que falam muito sobre sexo são malvistas, sobretudo se forem mães. Entrevistas revelam que “mulher que transa no primeiro encontro ainda sofre julgamento”: “Ela é muito fácil, deve ser galinha!”. Há dificuldades em diferenciar vulgaridade de liberdade.

Em cultos nada ortodoxos, pastoras evangélicas como Sarah Sheeva procuram converter as “cachorras” em “princesas”, “num complô contra o espírito da cachorrice”. Filha de Baby Consuelo e Pepeu Gomes, ex-ninfomaníaca, Sarah Sheeva prega a castidade e o controle dos desejos carnais entre evangélicas. A “missionária da abstinência” ataca o estilo vulgar das periguetes, cachorras e companhia. Ao dizer “não” ao sexo precoce, ao beijo na boca, à roupa colante, a pregadora oferece uma contrapartida para aquelas que não aderiram à coisificação. A ideia é transformar as mulheres em princesas, garantindo o respeito e a dignidade. E, como prêmio, terão o amor. Com a fórmula, o conto de fadas do “felizes para sempre” parece passível de se concretizar, com sucesso estrondoso e frases do tipo:

Príncipe não quer mulher fácil. Se der para o cara, dá atestado de cachorra para ele […] O homem testa a mulher para saber se é cachorra ou princesa. Para saber se o homem é príncipe, tem que fazer o teste dos seis meses: sem beijar nem pegar na mão […] Quem é casada já tem um peru para chamar de seu. Quem ainda não tem reza para ter, mas não fica de olho grande não, senão vem o tamanho errado e você acaba não podendo aproveitar direito. Porque Deus sabe a medida exata do encaixe e se você for princesa, seu príncipe vai ser seu tamanho”.

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Depois, o grito de vitória: “Fora cachorrada!!!”.

O que está por trás disso? “Dando ou não dando”, a brasileira continua a construir a identidade através do olhar do homem: do macho ou do príncipe. É ele quem escolhe a liberta ou a libertina. As que transformam o corpo apenas num mecanismo de proezas sexuais têm que lidar com consequências, nem sempre desejadas: gravidez, DSTs, solidão quando o corpo não é mais tão jovem. Na outra ponta, como demonstra Sarah Sheeva, a tradição não é opressiva. Para muitas, a liberdade sexual é um fardo, e elas têm nostalgia da velha linguagem do amor, feita de prudência, tal como vivenciaram os avós. A pergunta que fica é: quando vamos ser nós mesmas, sem pensar em como ou quanto os homens nos desejam? Sem ter que escolher entre ser santa ou p…?

Num de seus artigos para Cláudia, Carmem da Silva lembrava com humor que, nos anos 1960, quando uma mulher honesta falava em prazer, já se sabia: só podia estar falando de satisfações espirituais, como arte, literatura, contemplação da paisagem. E, perante a obsessão de gozar, explorada com exagero pela mídia, ela alertava: “A ideia de que deve ter orgasmo é um dos maiores estorvos à sexualidade feminina. Atenta ao ‘vem ou não vem’, tentando forçar com a vontade o que da vontade não depende, cobrando-se e temendo a cobrança do parceiro, a mulher vive o ato sexual com ansiedade e tensão, o que só serve para prejudicar sua resposta corporal”.

Mas será que o famoso “relaxa e goza” deveria funcionar só porque as mulheres se “liberaram” desde os anos 1980, leram William Reich e aprenderam a se masturbar? Pesquisas de Miriam Goldemberg revelam que não. Ela entrevistou muitas e… decepção! Elas preferem fingir que gozam para poder dormir ou fazer as coisas que querem. A lista de compras do supermercado, talvez? Muitas confessam se sentir oprimidas com a obrigação de gozar cem por cento das vezes.

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As queixas masculinas, por outro lado, desabam. Um sociólogo de 49 anos abriu-se com a socióloga: “Se minha mulher quisesse, eu transava com ela todos os dias. Só que ela não quer. Eu preciso muito mais de sexo do que ela. Por isso tenho duas amantes. Não vou transar só quando ela quer”. E um jovem jornalista, de trinta, revelou: “Depois que tivemos nosso filho, minha mulher não quer mais transar. Está sempre ligada no bebê, na casa, no trabalho. Diz que está exausta, que é uma fase e que não estou sendo compreensivo. Só que estou há mais de seis meses sem transar. Que homem aguenta?!”.

Conclusão: agora elas têm que transar e gozar, senão eles voltam ao antigo modelo de “uma em casa e outra na rua? Cachorras ou princesas? Homens e mulheres andam em velocidades diferentes, sem dúvida. Prova disso é a imprecisão das respostas.  Quando questionados sobre o número de parceiras que tiveram, 28% deles responde: “mais de dez” ou “perdi a conta”. Já as mulheres sabem exatamente com quantos se deitaram, como se cada um fosse significativo. Em novembro de 2011, a pesquisa DataFolha revelou que os homens têm em média 20,3 parceiras. As mulheres ficaram nos 3,9 parceiros. – Mary del Priore

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Princesas modernas ou “cachorras”? (Desenhos: Vogue e Fábio Mendes)

 

 

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