Escravos ou livres, portanto assalariados, mas com rendimentos que nem lhes chegavam às mãos, os índios estiveram sujeitos ao trabalho compulsivo, sem direito de escolher o local ou o salário. Só lhes restava a fuga ou a morte como forma de resistência. A década de 1650, por exemplo, registrou um surto de revoltas violentíssimas, que colocaram em questão a viabilidade da escravidão indígena. As fugas também aumentaram. Maus tratos – muitos eram presos com ferros –, o desejo de se reunir aos parentes ou o de liberdade eram o estopim para o abandono do senhor. “Andar fugido” passou a ser umas das formas de resistência ao cativeiro.
Mudanças? Em 1755, um Directório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão, estendido para toda a Colônia, em 1758, traria novidades: proibia-se a escravidão indígena, abolia-se a tutela religiosa nas aldeias e se proclamavam os nativos vassalos livres da Coroa. Por meio dele, Portugal desejava preservar fronteiras, incentivar a agricultura, converter os índios em mão de obra disciplinada. A língua portuguesa se tornou obrigatória, foram condenadas as crenças indígenas e incentivados os casamentos mistos. Portugueses que se casassem com índias não seriam mais considerados “infames” e seriam preferidos nas terras onde se instalassem com a família. Mais: os índios poderiam atuar na burocracia e assumir postos honoríficos, perdendo a “nódoa” que manchava sua “limpeza de sangue”.
Funcionou? Pesquisas recentes revelam um novo rosto para os índios. Presença na mão de obra diversificada, eles foram também trabalhadores em engenhos de açúcar, na atividade de fiação, nas minas de salitre, na lavoura de subsistência, na criação de gado, além de auxiliares na administração de aldeias indígenas e missões. Foram, também, tradutores, carpinteiros, pedreiros, meirinhos, prefeitos, juízes, entre outros cargos. Uma vez provada a fidelidade ao branco, sobretudo nos conflitos contra outros índios, o índio podia exercer cargos de responsabilidade e, integrado aos portugueses, inserir-se na sociedade colonial. Nem que fosse da maneira que, hoje, consideraríamos a mais bizarra: se reescravizando. Foi o caso da “cafuza Joana Batista, filha do preto Ventura, escravo do padre João de Mello e da índia Ana Maria, do serviço do mesmo padre”, que no dia 19 de agosto de 1780 passou uma escritura de venda de “si própria” a certo Pedro Costa, morador na rua São Vicente, em Belém do Pará, no valor de 80 mil réis. A razão, segundo o mesmo documento:
“Ela de seu nascimento foi sempre livre e isenta de cativeiro; e como ao presente se achava sem pai e sem mãe que dela pudesse tratar e sustentar assim para a passagem da vida como em sua moléstia, nem tinha meios para poder viver em sua liberdade […] cuja venda fazia unicamente de si por preço e quantia de 80$000 a saber: metade em dinheiro e outra metade, que são 40$000, em fazenda e trastes de ouro e o mais que precisar para seu ornato.”
Se maltratada ou se não se desse bem no “seu cativeiro”, seu senhor poderia “vendê-la a quem lhe parecer como sua escrava que por esta (escritura) fica sendo”. Uma exceção, sem dúvida.
Na outra ponta, uma elite proveniente dos “principais”, com poder político para deliberar com os colonos e possuidores de formação escolar, pois seus filhos tinham entrada nos colégios, aumentou a clivagem no interior dos diferentes grupos. A introdução de ofícios que permitiram a acumulação de bens e valores ajudou a solapar as estruturas tradicionais. Nascia uma nova elite, apta a submeter-se aos dominadores. A dispersão ou extermínio das tribos alavancou casamentos entre indivíduos sem conexões tribais. O apoio indígena foi decisivo para o triunfo da colonização. Porém, o resultado dessa colaboração foi tão evidente quanto trágico. A grande maioria de homens e mulheres se tornou súdita de segunda categoria.
- Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Colônia (vol.1)”, Editora LeYa, 2016.
Carlos Julião.