Ícone das primeiras décadas do século passado– e da mudança dos tempos – foi a pintora Tarsila do Amaral. Seu primeiro casamento, em 1906, fora arranjado e, posteriormente anulado, com um primo de sua mãe, o farmacêutico André Teixeira Pinto. Mulher deslumbrante, crescida em fazendas de café e educada na Europa, Tarsila teria uma vida frenética e turbulenta ao lado do segundo marido, Oswald de Andrade, com quem inicia um relacionamento ao final de 1922, depois da Semana de Arte. A união tem fim em 1929. Oswald apaixonou-se por Pagu, apelido de Patrícia Galvão, que era amiga e frequentadora da residência do famoso casal “Tarsiwald”. Seu desejo era separar-se para casar com Pagu, mas sabia que o pai dela, homem severo e conservador, jamais permitiria a aliança. Eis que – conta-nos Ana Luísa Martins – em fins de 1929, Pagu comunica a Oswald que está grávida. Ele concebe um plano simplesmente diabólico: um falso casamento, com padre e tudo, com um amigo seu. Tarsila e ele mesmo seriam os padrinhos. Finda a cerimônia, os recém-casados dirigem-se para Santos, de onde supostamente seguiriam viagem para Paris. Oswald os segue, troca de lugar com o “marido” e, junto com Pagu, segue para a Bahia.
Tarsila soube da notícia por um “feiticeiro”, certo Antenor, que frequentava sua casa. Ficou arrasada e não perdoou ou jamais quis Oswald de volta, quando este arrependido, tentou uma reconciliação. De 1931 a 33, viveu com médico nordestino Osório César, ao lado de quem atravessou uma “fase socialista”, com direito à viagem à União Soviética e debates com grupos de esquerda.
Ao iniciar um relacionamento com o intelectual e jornalista Luís Martins, carioca da Tijuca e vinte anos mais moço do que ela, em 1933, escandalizou a todos. A abundância de relacionamentos e separações, além da postura independente e desafiadora de Tarsila, era uma bofetada na cara da provinciana moral familiar que médicos e juristas tentavam colocar de pé. Sua correspondência, enviada a Luís Martins, em cujas cartas se despedia assinando Truly, e dizendo, “Aí vai meu coração cheio de saudades”, é um documento pungente dos amores apaixonados destes Anos Loucos.
Tarsila não estava só. As “uniões livres” e a crítica às relações monogâmicas indissolúveis faziam parte da bandeira dos anarquistas, bem entranhados nos sindicatos operários e intelectuais. O divórcio, em seu entender, facilitaria aos casais a separação definitiva, quando desejada, sendo, portanto, um instrumento de felicidade. O “amor livre” por sua vez, daria lugar à plena manifestação das emoções entre homens e mulheres. Em lugar do contrato de casamento efetuado diante da Igreja e do Estado, a “livre união” significaria a possibilidade de se definir livremente o tipo de relação amorosa mais adequada para cada qual.
Indo além, anarquistas consideravam igualmente o fim da valorização burguesa da virgindade, o direito ao prazer sexual, o direito à maternidade consciente, sem contar as suas acusações de que a prostituição era decorrente da exploração capitalista do trabalho, com tendência a desaparecer num mundo socialmente justo. A mulher não nascia com “taras hereditárias no sistema nervoso”, como queriam alguns eugenistas. Mas pobre e desprovida de educação. Uma pioneira a reivindicar o amor e o sexo fora do casamento foi Ercília Nogueira Cobra. Num ensaio precoce, publicado em 1924, intitulado Virgindade Anti-Higiênica, defende abertamente seus princípios, enquanto, ao mesmo tempo, o Código Civil previa a nulidade do casamento quando constatada pelo marido a não virgindade da noiva.
Uma outra notável feminista e anarquista, Maria Lacerda de Moura, autora de Amai e não vos multipliqueis, não hesitava em expor, com precocidade: “A ciência costuma afirmar que a mulher é uma doente periódica, que a mulher é útero. Afirma que o amor para o homem é apenas um acidente na vida e que o amor para a mulher é toda a razão de ser de sua vida e ela põe nessa dor o melhor de todas as suas energias e esgota o cálice de todas as suas amarguras, pois o amor é consequência lógica, inevitável, de sua fisiologia uterina. Há engano no exagero de tais afirmações. Ambos nasceram pelo amor e para o amor”.
A vida em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, devidamente “civilizadas” pelas reformas urbanas, deixava espaço para que, sobretudo, entre os membros das elites intelectuais, houvesse espaço para experimentar ou mesmo representar novas formas de sedução amorosa. Na mesma época em que Olegário Mariano registra suas impressões na poesia, J. Carlos inspirando-se nos novos costumes e na sociedade do seu tempo, cria a célebre personagem “Melindrosa”, e logo depois, seu companheiro “o Almofadinha”, dupla que representava os casais modernos. Também modernas, bem ao sabor da estação, eram as personagens do romance Enervadas, de Mme. Crysanthème, colaboradora regular do Mundo Literário: Lúcia, “enervada” pois sofria de “ânsia de gozar a vida, de não perder um bom pedacinho dela, de amar exaltadamente, de aborrecer, depois, fastidiosamente o que ontem adorara”. Sua amiga, Madalena Fragoso, “bela, de uma beleza de flor doente”, que principiava a picar-se com morfina e depois, viciada em cocaína; Maria Helena que “amava outras mulheres”,vestida como homem, o que lhe dava ares “de um adolescente insexuado”; Laura que “evocava suas recordações de amor que se sucediam como pratos de um longo menu de restaurante baixo”, e, finalmente, Margarida, bem casada e mãe de muitos filhos.
Também moderno foi o best-seller mais vendido na República Velha, Melle. Cinema, de Benjamim Constallat: 175 mil exemplares, num retrato de amores, entre as elites, nos Anos Loucos. A heroína, a jovem Rosalina é filha de um ex-ministro corrupto que viaja para Paris, a fim de gastar o dinheiro que ganhara. O fio condutor da estória leva da Cidade-Luz, a cigarros, amantes, cocaína, prostituição disfarçada que a faz ganhar uma “baratinha vermelha”, até à volta ao Rio, onde , na calma da praia de Paquetá, encontra o amor de um artista. Ele é suficientemente interessante para atraí-la, contudo, é excessivamente puro para que o romance dê certo. Rosalina é a antítese das paulistanas de quatrocentos anos que se educavam para casar e obedeciam pai e mãe até encontrar marido. – Mary del Priore
Autorretrato de Tarsila do Amaral.
Sou fã da Tarsila do Amaral e é sempre bom saber da sua vida pessoal e sobre seu trabalho. Tarsila talvez seja a pintora que melhor traduziu o Brasil em cores e telas e por isso também moderna e engajada nessa construção do imaginário moderno. Pioneira e também moderna foi Anita Malfati, que de família menos abastada, despontou sobre críticas duras a seu trabalho e considerada deveras moderna foi a “patinho feio” da Semana de 22. Gostaria de saber mais de Anita Malfati, sobre seu relacionamento com Mario de Andrade e sua vida pessoal tão pouco comentada.
Parabéns pelo Blog. Abraços!
E a fonte? O texto está a cara de um capítulo de tese de doutorado que está na rede. Por que omitir?
O texto é de Mary del Priore, como está colocado no final do post (basta você verificar). É baseado no livro “História do Amor do Brasil”.
Muita coincidência… Todas as referências usadas no capítulo de tese estão presentes no artigo. Vou checar em História da vida privada…