Os índios e a política do “grande terror”

Na última semana, o assassinato de um bebê da tribo Caingangue, em uma rodoviária de Santa Catarina, trouxe à tona o debate sobre as condições de vida dos povos indígenas. O crime, apesar de terrível, tem recebido pouca atenção dos meios de comunicação. Para muitos, isso é apenas mais um indício de como a nossa sociedade ignora as questões relativas a essa parcela da população. A demora na demarcação de suas terras, os conflitos violentos com fazendeiros e latifundiários, a “evangelização” forçada e a falta de assistência médica são alguns dos dramas vividos pelos indígenas no Brasil. A história nos mostra que as relações entre os colonizadores e os nativos foram quase sempre conflituosas: 

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Índios nas gravuras de Jean Baptiste Debret.

Inicialmente, os portugueses não afetaram a vida dos indígenas e a autonomia do sistema tribal. Enfurnados em apenas três ou quatro feitorias dispersas ao longo do litoral, dependiam dos nativos, seus “aliados”, para sua alimentação e proteção. O escambo de produtos como pau-brasil, farinha, papagaios e escravos – motivos de guerras intertribais – por enxadas, facas, foices, espelhos e quinquilharias dava regularidade aos entendimentos.

Mas, a partir de 1534, aproximadamente, tais relações começaram a se alterar. Chega ao fim a fase em que os brancos se mantiveram dependentes dos nativos. O estilo de vida e as instituições sociais europeias, como o regime de donatarias ou de capitanias hereditárias, entranhavam-se na nova terra. Não por acaso, nesse momento multiplicam-se as queixas dos portugueses em relação aos índios. Os tupinambás, no entender dos lusos, “usavam de bestialidades mui estranhas”: pedras ou ossos nos beiços, por exemplo, vivendo como “alimárias monteses”, ou seja, como animais. O fato de não possuírem nem fé, nem lei, nem rei – traços inicialmente vistos com certa condescendência, transformou–se pouco a pouco em justificativa para desprezá-los. Pior: o canibalismo, registrado primeiramente em 1502, por Américo Vespúcio, transformou muitos grupos tribais em símbolo por excelência da barbárie aos olhos europeus.

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Ao substituir o escambo pela agricultura, os portugueses começavam a virar o jogo. O indígena passou a ser, simultaneamente, o grande obstáculo para a ocupação da terra e a força de trabalho necessária para colonizá-la. Submetê-los, sujeitá-los, escravizá-los, negociá-los tornaram-se a grande preocupação. Mas preocupação para quem?
Primeiro, para os doze donatários das quinze capitanias distribuídas por d. João III, rei de Portugal, em 1534. Esses donatários eram selecionados entre funcionários da Coroa, veteranos ou negociantes, que tinham feito fortuna no Oriente. Dentre seus direitos e deveres, constava não lesar a população, aceitar impostos em espécie, pagar à Coroa o quinto sobre pedras preciosas encontradas e pertencer à religião católica. Deviam prover prosperidade para suas capitanias, beneficiando, ao mesmo tempo, a Coroa. Vinham para cá com seus parentes e afins, como foi o caso de Duarte Coelho, em Pernambuco. Também vinham degredados, alguns condenados pela justiça secular, outros pela Inquisição, instituída em 1536. Eram os “indesejáveis do Reino”, sobretudo bígamos e feiticeiras. Vir sentenciado para a América portuguesa era considerado pena árdua, era destino malfadado.

A economia colonial teve início seguindo o modelo usado nas ilhas da Madeira e de São Tomé: cultivo de cana-de-açúcar, construção de engenhos e uso de mão de obra escrava. Começava, assim, a rendosa empresa de caça ao indígena, e com ela o tráfico de negros da terra – termo utilizado para diferenciá-los dos negros africanos, que, aliás, começaram a chegar em profusão por volta de 1550 –, a fim de abastecer os núcleos de colonização. Como grande parte das capitanias foi destruída por ataques de índios e vários donatários nem sequer vieram ao Brasil, a Coroa criou, em 1549, o governo-geral, estrutura administrativa que incluía um governador-geral, um punhado de magistrados e funcionários dependentes do rei. Os anos que se seguiram foram cruéis para os indígenas. Já em 1548, o regimento do governador Tomé de Souza instruía o governo para dobrar os índios hostis aos portugueses, dando-lhe carta branca para destruir aldeias, matar e punir rebeldes como castigo exemplar.

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A política de “grande terror” recomendada por d. João III consistia, inclusive, em amarrar o índio que praticara algum delito à boca de um canhão, fazendo-o explodir. Mem de Sá, que assumiu o governo-geral em 1557, foi, sem dúvida, o campeão da violência. Vamos ouvi-lo:

entrei nos Ilhéus fui a pé dar em uma aldeia que estava sete léguas da vila […] dei na aldeia e a destruí e matei todos os que quiseram resistir, e a vinda vim queimando e destruindo todas as aldeias que ficaram atrás e, por se o gentio ajuntar e me vir seguindo ao longo da praia lhe fiz algumas ciladas onde os cerquei forcei a deitarem a nado na costa brava”.

Lutas seguiam-se. Em meados do século XVI, a Confederação dos Tamoios, primeiro movimento de resistência a reunir vários povos indígenas, como tupinambás, goitacases e aimorés, teve o apoio de huguenotes franceses, terminando com milhares de índios mortos e escravizados. O conflito, conhecido como Guerra de Paraguaçu (1558-59), destruiu 130 aldeias. Por essa época, multiplicavam-se as revoltas do gentio, com assaltos a núcleos de colonização e engenhos, mortes de brancos e de escravos negros.

Encerra-se o primeiro século da presença lusa em terra brasileira, com a colonização de parte do litoral e de pequenas áreas da terra adentro. Notícias fabulosas sobre minas de ouro e pedras preciosas ensejaram expedições rumo ao sertão. A criação de gado, por sua vez, estimula ainda mais a ocupação interiorana. No Sudeste, a fundação de São Vicente e Santo André da Borda do Campo abrem, para o gado, as portas para os sertões do Sul. Nesses processos de expansão, novas guerras e novos massacres contra as populações indígenas são registrados. – baseado em “Uma Breve História do Brasil”, de Mary del Priore e Renato Venancio. Ed. Planeta.

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Foto: Índios de Todas as Tribos (site); Acima: Índios protestam em frente ao Tribunal Supremo. Imagem: Wilson Dias/Agência Brasil.

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  1. Antonio Carlos

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