Presentes em todo o Ocidente cristão, uma série de monstros faria a rota dos navegadores em direção ao oeste, chegando junto com os primeiros colonizadores. Acompanhavam-se do olhar que os europeus tinham sobre o novo continente, enquanto que se perguntavam: o Novo Mundo seria habitado por seres que descenderiam de Moisés ou seria o endereço fixo do demônio e, por isso mesmo, uma fábrica de mostrengos em permanente produção? Por esta razão, o magistrado bordalês Pierre de Lancre, famoso por julgar processos de feitiçaria na França, dizia que nas bruxas francesas havia resquícios de diabos caçados e expulsos da América. As criaturas teriam voltado à Europa para se vingar de seus perseguidores.
Dentre os europeus capazes de detectar monstros no Brasil, encontrava-se o renomado gravador Theodor de Bry. Protestante e originário de Liège, na Bélgica, foi autor de uma enorme coleção denominada Grandes viagens, na qual colocou a técnica de desenho e reprodução a serviço do testemunho de viajantes e de suas navegações. No final do terceiro livro da coleção, há uma importante gravura denominada O inferno brasileiro. Ela reproduz outra gravura, esta impressa por Jean de Léry para acompanhar o relato de sua passagem pelo Rio de Janeiro, onde foi prisioneiro dos tupinambás, em 1585. Nesse relato, ele detalhava: “Durante sua vida os pobres selvagens são terrivelmente afligidos pelo espírito maligno (ao qual chamam kaagerre) que, como vi, várias vezes os ataca […] eles dizem que visivelmente o veem em forma de besta ou ave, ou em outra forma estranha.”
Nas gravuras de Bry, o tema sofreu o impacto dos códigos europeus sobre caráter diabólico dos habitantes do Brasil. A cena descortina uma paisagem litorânea, na qual o mar faz a linha do horizonte com o céu. Uma suave montanha morre na costa. Duas meias palmeiras fazem a borda da imagem, espécie de janela para a esplanada infernal. Uma pirâmide humana amontoa corpos atormentados. Um deles se inclina sob os golpes desferidos por um monstruoso e sarcástico demônio. Soberbamente enfeitado com asas escamosas, chifres, garras, cauda bifurcada, coxa peluda e sexo ornado com uma cabeça satânica, ele parece cristalizar todos os vícios. Dois outros monstros rasgam o céu, de olho em suas vítimas: um, meio pássaro, meio serpente, tem a pele coberta de escamas e um bico pontudo. Outro, asas enormes abertas, escarra seu veneno. No mar pululam peixes-voadores com bicos, chifres e tamanho anormal.
No centro da gravura, outra criatura monstruosa extraída do livro de Léry: o hay. E a legenda: “O maior animal, que os selvagens chamam hay, é grande como um cão d´água com a face de um macaco, próxima daquela de um homem. O ventre pendente como o de uma porca prenhe, o pelo cinza esfumaçado como o da lã do carneiro negro, a cauda bem curta, as pernas peludas como as do urso e as garras muito longas.” Ninguém adivinharia que por trás da horrenda criatura estaria o inofensivo bicho-preguiça.
Inúmeras crenças sobre criaturas extraordinárias, capazes de assustar, mas também de despertar a curiosidade, se multiplicavam. Acreditava-se existir, entre a atual Venezuela e as Guianas, uma família de homens que não tinham cabeça e com olhos no tórax. Sir Walter Raleigh, que levou, em 1585, o tabaco para a Europa, dizia tê-los visto ali, localizando-os como moradores de Caora.
Outro cronista assombrado com as criaturas fantásticas da Terra de Santa Cruz foi o capuchinho francês Yvres d´Evreux, que conviveu entre os índios do Maranhão durante a ocupação francesa e que publicou um livro em 1615. Nele, a figura mítica de Jurupari, o primeiro senhor do culto mais vasto e comum a todas as tribos, embaixador do sol, senhor de rito exigente e precauções misteriosas, surge como fonte de terror para os tupinambás com os quais conviveu. Mas também de diabolização por parte dos padres catequistas. Conta o capuchinho:
“Pensam que os diabos estão sob o domínio de Jeropary, que era criado por Deus e que por suas maldades Deus desprezou, não querendo mais vê-lo, nem aos seus. Dizem também que Jeropary e os seus acólitos têm certos animais que nunca se veem, que só andam à noite, soltando gritos horríveis que abalam todo o interior”.
Não só Jurupari, mas também o Curupira, – que provavelmente inspirou o termo “caipira” – foi dos primeiros duendes selvagens que a mão do europeu fixou em papel e comunicou ao outro lado do Atlântico. Em carta de São Vicente, em 31 de maio de 1560, citava-o o padre José de Anchieta. Segundo ele, era dos entes mais temidos pelos indígenas. Nas longas marchas sertão adentro, os guerreiros aliados dos portugueses lhes contavam dos seus pavores. O nome do Curupira era mencionado entre sussurros de medo. Sob sua batuta se curvavam as árvores e os animais e dele se dizia chefiar todos os assombros da floresta. Padre Simão de Vasconcellos, outro jesuíta, o denominou “o espírito dos pensamentos”. Índio pequeno, de cabelo vermelho ou cabeça pelada, poderoso senhor da caça e dono das matas cujos segredos conhece e defende, o Curupira tinha uma característica já descrita por viajantes medievais: os pés tornados ao avesso, dedos atrás e calcanhar para a frente, mostrengo habitante da longínqua Índia. Padre Simão de Vasconcellos registrou-o em sua Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil, em 1663, explicando:
“Essa casta de gente nasce com os pés às avessas, de maneira que quem houver de seguir seu caminho há de andar ao revés do que vão mostrando as pisadas: chama-se Matuiús.”
Já certo Anhanga, espírito malfazejo, se encontra mencionado nas cartas dos jesuítas Anchieta, Nóbrega e Fernão Cardim. O franciscano e cosmógrafo do rei de França, Francisco III, o francês André Thevet, observou, em 1558, que a criatura não tinha forma definida. Seu objetivo era apenas atormentar os vivos: “Veem muitas vezes um mau espírito ora numa forma, ora em outra, o qual nomeiam em sua língua Agnan e os persegue frequentemente dia e noite, não apenas a alma, mas também o corpo.”
Espanto mesmo causou o aparecimento de um monstro marinho ao vivo e a cores no litoral de São Vicente. Quem o descreveu foi Gandavo em seu História da Província de Santa Cruz:
“Foi causa tão nova e tão desusada aos olhos humanos a semelhança daquele fero e espantoso monstro marinho que nesta província se matou no ano de 1564, que ainda que por muitas partes do mundo se tenha notícia dele, não deixarei, todavia, de a dar aqui outra vez de novo, relatando por extenso tudo o que acerca disso se passou.”
O autor acompanhava seu texto de uma imagem do monstro “tirada pelo natural”: cabeça e focinho de cão, seios femininos, mãos e braços humanos e patas de ave de rapina. No meio do corpo, uma cloaca. A Ipupiara estava, pois, longe se sugerir a beleza das sereias capazes de seduzir incautos marinheiros. Escrevendo em 1590, padre Cardim dava ainda maiores detalhes. Os homens teriam boa estatura e olhos encovados. As “fêmeas”, formosas de longos cabelos, pareciam mulheres. O modo que tinham em matar pescadores era este: “Abraçam com a pessoa, tão fortemente, beijando-a e apertando-a consigo, que a deixam feita em pedaços […] e como a sentem morta são alguns gemidos como de sentimento, e largando-a fogem; e se levam alguns comem-lhe somente os olhos, narizes, pontas dos dedos dos pés e mãos, e as genitálias, assim os acham pelas praias com essas coisas menos”.
Tais monstros e criaturas demoníacas constituíam a pedra de toque da autêntica experiência de viagem ou de estada no Novo Mundo. O encontro com a “coisa” inesperada era, na realidade, esperado, pois vinha precedido da tradição oral ou escrita. Não havia regras para o encontro com o demônio ou os monstros. Bastava encontrar um testemunho digno de fé que anunciasse como fato seguro a sua existência. E eles não faltaram. De padres a viajantes estrangeiros, de piratas a colonos, tantos viram e tantos contaram histórias à noite, ao pé do fogo… – Texto de Mary del Priore.
Ilustração: National Library of Sweden.
gostei nao