Por Natania Nogueira.
Uma pessoa idosa falece e deixa como herança uma propriedade centenária. Os herdeiros mais que imediatamente colocam a propriedade à venda. Pouco tempo depois ela é demolida dando lugar a um estacionamento ou a um prédio de 10 andares. Na sua cidade acontece isso? Pois na minha, tem acontecido com cada vez mais frequência. Nem mesmo se cogita, na maioria dos casos, dar ao edifício alguma função, reformar ou mesmo alugar. É simplesmente vender e demolir.
Esse processo se intensificou após o pedido de tombamento de uma residência. Por lei, ela deveria ser preservada, mas os donos brigaram pelo direito de demolir porque o que realmente tinha valor monetário era o terreno, a localização do imóvel. Como nem sempre a lei se cumpre, o tombamento foi interrompido. Depois desse episódio, que testemunhei de perto porque na época participava do Conselho de Patrimônio, várias casas antigas do centro da cidade foram sendo demolidas, da noite para o dia. É o medo do tombamento.
Aos poucos estou vendo a minha cidade perder os prédios centenários que ainda possui. Cada vez que vou ao centro antigo parece que uma nova casa está sendo preparada para demolição. Acredito que ao final da década, o centro da pequena cidade de Leopoldina (MG), emancipada em 1854, não terá mais do que duas ou três edificações do século XIX ainda intactas. Isso porque estou contado com o Museu Augusto dos Anjos, o sobrado de um amigo que foi restaurado e a casa de uma senhora que eu conheço há muitos anos e que sei que a família pretende preservar.
Acho triste. Por várias razões. A primeira é porque percebo que os ditos herdeiros não se sentem ligados ao local, não possuem aquele sentimento de pertencimento que faz com que se busque preservar a memória da família, daquele grupo de pessoas com quem você compartilha toda uma história. Há opções. O imóvel pode ser reformado e alugado sem perder suas características originais. Acho tão charmosas construções antigas transformadas em lojas ou escritórios. Elas tem um ar retrô acolhedor. Mas nem todo mundo pensa assim.
Até entendo a posição delicada dos poderes públicos. De um lado as prefeituras não podem sair adquirindo imóveis para tombar, não há verba para isso; por outro o ministério público não pode garantir que umimóvel particular tombado seja realmente conservado. Existe, claro, a questão financeira. Sei que há casos em que os novos proprietários não possuem realmente condições para investir na preservação e nem existe uma política de incentivo fiscal que os estimulem a isso. Por outro lado, existe a falta de visão empreendedora que vê o velho, o antigo, como algo inútil, ultrapasso.
Aí, vem o medo do tombamento, aquele fantasma que persegue o proprietário do imóvel. Daí a ação rápida: vender e demolir. Falta de informação, falta de empreendedorismo e arrisco dizer, falta de raízes.
Quantos exemplos maravilhosos temos aqui mesmo no Brasil de edificações que são restauradas, reformadas e transformadas não apenas em um espaço para uso da sociedade quanto em um investimento lucrativo! O suficiente para fazer com que alguns arquitetos sugiram uma ação alternativa como, por exemplo, a preservação da fachada original.
Posso citar um de imediato: o Paço Alfândega, em Recife (PE), um prédio datado do ano de 1732. O edifício foi um convento, depois a alfândega e atualmente é um Shopping Center com aproximadamente 80 lojas. Uma obra empreendedora, que alia interesses particulares com a preservação, que mostra que o moderno e o antigo podem conviver em perfeita harmonia.
Fico imaginando o futuro, que não está tão longe assim, quando pouco sobrar para ser lembrado. Eu o comparo a uma fotografia desgastada com o tempo. No final fica apenas o contorno amarelado da pessoa fotografada. É como ter a identidade apagada, esquecida. É preciso restaurar a imagem e recuperar essa identidade. Acho que essa é a função da educação patrimonial e acho que ela deve incluir toda a comunidade, não deve se limitar apenas à escola.
Paço Alfândega, em Recife (PE).
Pelo menos aqui em Salvador e em outras cidades no interior, podemos nos deslumbrar com as antigas arquiteturas no Pelourinho, cidade baixa entre outras.
Cidades turísticas sãos as primeiras a reconhecer a importância do tombamento, principalmente do ponto de vista econômico. Infelizmente, nem toda cidade é histórica ou tem um patrimônio considerado importante para toda a humanidade. Uma opção, acho, seria criação de centros de memória. Mesmo com a demolição de prédios, com a descaracterização urbano, o centro de memória poderia funcionar como uma capsula do tempo. Documentos e imagens preservados podem ser utilizados para manter viva a memória local ou nacional. Mas apenas ter um centro de memória não basta, é necessário que a ele esteja vinculado um projeto pedagógico, para que ele não se torne apenas um mero depósito de objetos curiosos.
Penso Natania que o que realmente falta é uma política bem desenhada de preservação patrimonial. O que temos hoje é uma política que só transfere responsabilidades, não traduzindo de forma prática e concreta os anseios de quem quer preservar, de quem detém o bem e não tem condições nem de restaurar e do poder público enquanto gestor patrimonial e cultural.
A gestão patrimonial brasileira não é para soluções e sim para “carregar” o problema, ou seja, o bem acaba virando um fardo, na interpretação e sentimento de muitos, que é jogado de um lado pro outro até que se deteriore ou numa surdina passagem de um dia para o outro se transforme em ruínas de uma demolição corrida, ou até mesmo queimado nas chamas de incêndios misteriosos…
Mas quando me coloco no lugar de algumas famílias “herdeiras” do imóvel, entendo a angústia, pois há situações que levam muitos destes a se verem diante de uma herança maldita, pois carregam o peso da preservação de uma memória que vai além da memória da própria família e por isso mesmo deveria ser melhor tutelados pelo poder público.
Só acredito numa política patrimonial que realmente destine recursos para restauro e preservação, sem a necessidade de uma peregrinação, que na maioria das vezes acaba por não levar a lugar nenhum. As famílias, os proprietários, não poderiam carregar consigo, solitariamente a responsabilidade de toda uma sociedade e nós não podemos viver esperando que os bens patrimoniais sejam preservados somente pela boa vontade e o bom entendimento de seus herdeiros e proprietários…
Gostei da sua opinião, Claudia. Sensata. Sim, o poder público tem a obrigação de promover a preservação. De fato, o proprietário não pode, sozinho, arcar com essa responsabilidade. Mas, enfim, nossos sucessivos governos empurram todas as responsabilidades para a iniciativa privada, incluído aí até a saúde.
Pois é… a Claudia colocou bem. É uma situação delicada. Sei que a mudança vem, sei que não tem como escapar,mas eu gostaria que ela viesse junto com a preservação. Eu me sinto muitas vezes sendo colocada em uma linha de tiro. se falo em preservar estou contra alguém: ou o poder público que não quer assumir ou não tem recurso para isso, ou do proprietário de um imóvel, que acha que estamos tirando dele o direito de decidir o destino do seu bem. Agora, como o Oswaldo mesmo colocou, no nosso país, recursos para saúde e educação são poucos, imagine para cultura e preservação.
Concordo com você, Natania. A grande especulação imobiliária, aliada ao interesse exclusivo dos lucros exorbitantes, bota abaixo a história e a identidade das cidades. Petrópolis, por exemplo, ainda preserva seu centro histórico porque o IPHAN agiu rápido. Porque o resto da cidade…
Teresópolis, cidade onde moro, nada tem preservado. Nada mesmo! Infelizmente para mim, para você e para todos aqueles que sabem da importância da preservação da História.