A morte e a “viagem” para o Além

           Depois da morte, o nome do defunto deixava de ser pronunciado; guiada por São Miguel, aspirada pela lua, sua alma deveria passar a via Láctea. Caso não tivesse recebido a absolvição dos pecados, ela continuava a perambular pela terra durante três dias. O morto poderia voltar? Na tradição portuguesa, sim. Em algumas festas: Natal, Dia de Reis, São João e Corpus Christi eles partilhavam os restos das refeições que lhe eram deixadas nos cemitérios. O banquete ritual foi uma prática condenada pela igreja através do cânone LXXIX, do Concílio de Braga de 572: “não era permitido levar alimentos ao túmulo dos defuntos nem oferecer sacrifícios em sua honra”.

         A viagem para o Além podia ser atrapalhada por espíritos malignos capazes de estender ciladas aos mortos. Na tradição ibérica, as orações pediam proteção contra o diabo, “potestas aéreas”, “anjos aterrorizadores” e “príncipes das trevas” como seres perigosos e capazes de desviar a alma do bom caminho.

        Na excursão, os bons iam para o céu, de onde traziam boas notícias e apareciam com mensagens de outros mortos. Os danados ardiam no inferno. Para o limbo, partiam as crianças que não receberam batismo. Lá não veriam Deus, nem podiam ter esperança de encontrá-Lo. As almas do purgatório apareciam em encruzilhadas, nas cruzes de estrada, nos ossuários e cemitérios. Vivos e mortos tinham contato alimentando o folclore com histórias: a da burrinha sem cabeça, o chimbira, o vira-roupas que assustava lavadeiras, as visagens e visões. A crença na “luz trêmula” da vela, como mensageira de outro mundo, recado autêntico das almas, se encontrava de Norte a Sul. Estalidos e o crepitar da chama, exigiam imediato sinal-da-cruz de quem estivesse por perto. Muitos vivos mandavam recados aos seus mortos, aproximando-se do ouvido do morto e dirigindo-lhe a palavra como se fosse pessoa viva.

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        O morto seguia vivo no túmulo. Imóvel, mas consciente. A sepultura era apenas uma outra residência, cela do dormitório onde aguardaria o despertar no Dia do Juízo. Eis porque sua interferência no quotidiano era possível, sobretudo, quando se tratava de fazer justiça, arrancando línguas de maldizentes, realizando vinditas implacáveis, punindo mentiras. Ele voltava para punir pecados sociais, sentenciando e condenando. O morto como sombra ou fantasma podia manifestar-se aos vivos de forma perturbadora e terrível, sobretudo, quando por alguma razão, não pode beneficiar-se de sepultura e de rituais fúnebres, caso de muitos escravos, suicidas e náufragos. O morto podia também, pelo contrário, proteger invisivelmente os vivos, nomeadamente seus parentes. E amigos que recordassem piedosamente o seu nome, e por ele oferecessem preces, sacrifícios e até esmolas; o morto assegurava aos vivos, prosperidade e fecundidade, protegendo-os dos perigos e inspirando-lhes suas decisões.

        Quem sabe, razão pela qual uma tradição medieval portuguesa e recriada no Brasil pelos africanos, teve extraordinária longevidade. Trata-se da Recomendação ou Encomendação das Almas, realizadas durante a Quaresma. Soturnos cortejos deixavam, orando, seus pequenos vilarejos e caminhavam contritos até o cemitério local, chegando sempre à meia noite, horário em que, acreditava-se, os mortos vinham ao encontro dos vivos. Vinte e quatro horas antes, em alguns grupos se preparava a “guiné”: bebida mágica à base de aguardente, alho, raízes da planta do mesmo nome e raspas de chifre de boi ou veado.

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         A poção “fechava o corpo” e protegia, pois, fora enterrada por um tempo no “mundo de baixo”, onde os afro descendentes acreditavam habitar seus mortos com quem compartilhariam forças. Depois de ingerida, de preferência numa encruzilhada, lugar simbólico de comunicação entre uns e outros, entoavam-se cantigas oferecidas a todos os tipos de almas: as do Purgatório, as da comunidade, as dos necessitados, as dos ofendidos ou mortos de picadas de cobra, a dos pais e mães, a dos mortos por tiro e assim por diante.

        E os índios? Os viajantes europeus relataram as cerimônias fúnebres realizadas longe do homem branco. Em Minas Gerais, contam Spix e Martius, eram enterrados de cócoras dentro da cabana ou metidos dentro de um grande vaso. A cabana era abandonada, pois não se queria perturbar seu sono. Podiam ainda ser simplesmente metidos ao chão depois de embrulhado em embirra ou tecido velho de algodão. O chão era pisoteado, duas vezes ao dia, ao som de um lamento fúnebre. Por cima da cova, repousavam as armas, alimentos e caça do morto. As viúvas, segundo ouviram contar os mesmos viajantes, pintavam o corpo de preto e cortavam curtos os cabelos. Isto já passados mais de 200 anos de presença portuguesa.

  • Texto de Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Colônia (vol.1)”, Editora LeYa, 2016.
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“Absurdo funeral”, de Goya.

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