Em pleno amanhecer do século XX, os diabos existiam? Resposta: sim. Na tenda de feiticeiros que se tornou a capital da corte, não faltavam missas negras, satanistas, espectros que caminhavam ao lado das pessoas e magos amigos de Belzebu. A prova é que fatos estranhos deram de acontecer: sereias, faunos e tritões apareciam, aqui e ali. O João catraieiro, no cais dos Mineiros, vira emergir do mar uma dama de vermelho e homens de barba verde que riam e assobiavam. Histéricas, não curadas pelos métodos do neurologista francês dr. Charcot, subiam o morro, debaixo de mantilhas para esconder o rosto. Iam buscar tratamento com frei Piazza, que exorcizava das quatro da manhã às quatro da tarde, uma vez por semana. Só em 1903, foram mais de trezentas demoníacas que Satã arrastara para as profundezas do inferno. O jornalista João do Rio perguntou: “O exorcismo é público?”. E obteve como resposta: “Nem sempre. O Diabo pela boca dos possessos conta a vida de todos, injuria os presentes. Não é conveniente”.
O exorcismo se fazia de acordo com regras estabelecidas num livro de marroquim vermelho: o Rituale. Lia-se em voz alta o ofício de expulsão do “ministro indigno de Deus”, seguido de passagens dos evangelhos segundo São João, São Marcos, São Lucas. Nesse ínterim, se fazia várias vezes o sinal da cruz no possesso envolto na estola clerical.
Porque o Diabo amava a imundície, encontrava suas vítimas nas “classes baixas, sem limpeza”. Graças à sua presença, as pessoas se tornavam sábias, de repente. Falavam línguas estrangeiras. Era fácil para o exorcista identificá-las. Enquanto isso, a endemoninhada pra- guejava, batia a cabeça, coleava como cobra, cuspia até cair exausta e livre do Príncipe das Trevas. A ordem era de que fosse para casa anunciar as boas coisas que Deus fizera por ela. Frei Piazza trabalhava demais, pois havia muitos satanistas na cidade. Um dos pontos de encontro dessa gente era o herbanário do Saião, na rua Larga de São João. Ali, segundo o jornalista, reuniam-se as cartomantes, os magos, os negros dos ebós, as parteiras, praticantes de “todo o crime religioso”. E que crimes! Um comprava carneiros para lhes chupar o sangue, pois era “vampirista”. Outro satisfazia apetites inconfessáveis – detalhe: era prosaico funcionário dos Correios, esclarecia João do Rio. Outros ainda praticavam a missa negra e encantamentos com bonecos de cera representando quem se queria prejudicar.
Havia quem xingasse a Virgem Maria com sonoros palavrões e quem desfiasse um rosário de nomes ocultistas e simbólicos. Os escritores transformavam Belzebu em personagem de novelas. Homens e mulheres chamavam seu nome para obter amor, riqueza e poder. “Satanás faz milagres a troca de almas”, admoestava João do Rio. E ainda animava sabás, festas noturnas com “fúrias desnudas e sob a ventania do cio”, no pacato Engenho Novo. Seus ajudantes eram espíritos de mortos, ou fantasmas dos que tiveram morte violenta.
O problema, segundo Saião, eram os “malefícios satânicos estarem inundados de azeite de dendê e de ervas de caboclos”. A magia “estava decaída eivada de costumes africanos e misturadas de pajés”! Não se aplicavam corretamente as receitas do livro de magia Clavícula de Salomão: ratos brancos, morcegos, sangue mensal das mulheres, fluidos vários e sangue. Muito sangue. Na missa negra presidida por Justino, o Bode, se misturavam, segundo João do Rio, velhos viciados, ninfomaníacas e prostitutas que comungavam hóstias roubadas à igreja mais próxima. O cenário tinha um altar-mor, ladeado de um pavão de cauda aberta, símbolo do Vício Triunfal. No teto, morcegos em corações de papel vermelho e panos pretos com cruzes de prata. A sala, iluminada por castiçais altos, era sufocante com os cheiros do braseiro. Sacristãos seminus, depois de orações conclamando Satã, davam início ao bacanal. Na saída, assustado, João do Rio ainda ouviu do porteiro: “Não quer água maldita?”. Saiu correndo como doido na noite enluarada, contou.
Próximo aos satanistas, estavam os leitores do Livro de São Cipriano: livro de feitiçaria com sua carga de maldição, vendido nas boas casas do ramo, como a livraria Garnier, em meio a autores como Alencar e Kardec. Ao trazer ao leitor uma série de informações sobre alquimia, astrologia, ritos pagãos e cabala, o texto formava um ciclo de narrativas em que o Demônio era logrado pelo santo bruxo. Mas não sem antes ensinar uma série de artifícios para compensar as agruras e impotências da vida. Ali se encontravam instruções para tratar moléstias, além de cartomancia, esconjurações e exorcismos. A Oração da Cabra Preta, a Oração do Anjo Custódio e outras da crença popular também eram inclusas: Magnificat, Cruz de São Bento, Oração para Assistir aos Enfermos na Hora da Morte, etc. Além dos rituais de como obter um pacto com o Demônio, como desmanchar um casamento e o da caveira iluminada com velas de sebo.
Cipriano, o feiticeiro, sempre foi celebrado no dia 2 de outubro. Foi um homem que dedicou boa parte da vida ao estudo das ciências ocultas. Dizia-se dele que tinha a graça de curar com preces e o toque das mãos. Era capaz de criar diabinhos familiares, chamados de familiás ou fradinhos da mão furada, com menos de um palmo de altura, mas capazes de coisas maravilhosas. Definia quem eram os fantasmas, assim como os meios para combatê-los. Sua invisibilidade, porém, era um dos pontos altos do mistério que o envolvia. Reza a lenda que, após se deparar com a jovem santa Justina, converteu-se ao cristianismo. Martirizado e canonizado, sua popularidade cresceu devido ao famoso Livro negro, um compilado de rituais de magia escrito antes da conversão. Como se vê, na corte imperial, por baixo do cristianismo, batia forte o coração do paganismo.
Paganismo e tradição popular que faziam – surpresa! – do Diabo um bom amigo. Contrariamente à imagem pintada pela Igreja de um chifrudo vermelho, de olhar de fogo e longas garras capaz de afundar o pecador nos horrores do inferno, a tradição popular o levou para o palco por meio da imagem irônica, amigável, irreverente e esperta do “bom diabo”. Encontrado nos espetáculos de mágica como um dos atores principais, ele era sucesso de bilheteria. Nos palcos, personagens como Satanisa, Sataniel ou Diavolina, encarnados por atores renomados, levavam remédios para os doentes, serviam de alcoviteiros entre namorados, eram cômicos e matreiros. A fronteira entre o Bem e o Mal, Deus e o Diabo já não era mais a mesma.
-Mary del Priore, me “Do Outro Lado- a História do Sobrenatural e do Espiritismo”, Editora Planeta.
Figuras demoníacas povoaram a obra de Goya.
ADOREEEI!!! QUERIA FAZER MINHA TESE DE MESTRADO NESSE TIPO DE TEMA, MUITO LEGAL MESMO. PRENDE A ATENÇÃO DA GENTE.