Carlota Joaquina: a busca pelo poder

Carlota Joaquina foi leitora de Chateaubriand, Condorcet e Rousseau, de Cervantes, de obras licenciosas – como Le marquis de Valmont –, de jornais estrangeiros, de manifestações referentes às colônias espanholas, enfim, de tudo o que alimentasse sua curiosidade. Sobre ela dirá, mais tarde, o embaixador espanhol Casa Irujo, já no exílio tropical, “se impone com facilidad em los negócios, los conoce y gusta ocupar-se dellos”. Enfiada em seu escritório, Carlota adquiria conhecimentos “poco comum em su sexo”, diria Casa Irujo.

Tais conhecimentos, cuidadosamente acumulados, começariam a mostrar os dentes alguns anos depois da morte de seu sogro,  D. Pedro, em 1786. Fosse pela vida acanhada da corte portuguesa, fosse pelo poder que emanava de Espanha e do trono Boubon, Carlota se mostrou desde então com apetites políticos. O reino – “pequeno, fraco e insignificante” nas palavras do viajante francês J.B.Carrére – apertado entre o punho dos ingleses que drenavam seu ouro e o dos espanhóis que desejavam engoli-lo, prestava-se á singular conjuntura de crise. As circunstâncias familiares –  a morte de D. José em 1788 e a doença da sogra – permite ao casal chegar a um lugar de proeminência: serão os futuros reis. Ela era, agora, a consorte do príncipe regente. E como tal irá demonstrar o seu apetite por poder na chamada Conspiração dos Fidalgos, conspiração que se desenrolou entre 1805 e 1806.

Os preâmbulos da conjura dão os primeiros passos por razão simples. Carlota se vê excluída das honrarias, prerrogativas e poderes que teria como consorte, no leme das decisões de governo. D. João, por seu lado, não se deixava enganar. Alijava deliberadamente a mulher do poder, tentando desmantelar suas ambições. Deste embate de autoridades nasceu uma guerrilha conjugal. Tudo era pretexto para brigas: escolha de criados, questões de etiqueta, casamentos de fidalgos. Embora admoestada para usar “cadeias de rosas e astúcias de esposa”- como lhe recomendava  D. Leonor de Almeida, condessa d’Oyenhausen e açafata, Carlota mais e mais preferia cúmplices capazes de lhe dar calço no contra poder que exercia.

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No plano externo, a revolução francesa havia fragilizado o papel do pequenino Portugal. Espanha aproximou-se da França, depois da assinatura da Paz de Basileia e Portugal temia incorrer em qualquer erro político que a afastasse da proteção britânica. Ora as pressões franco-espanholas eram gritantes. Impossibilitado de atendê-las D. João se curva aos interesses ingleses. Carlos IV, sentindo-se preterido, agride o vizinho em 1801, na chamada “Guerra das laranjeiras”. A aristocracia acompanha os embates dividindo-se entre facções pró-inglesas, pró franco-espanholas. A corte afunda em conjuras, incidentes conspiratórios e murmurações envolvendo os membros das diferentes facções. Eram lutas de poder ligadas a hegemonias que se decidiriam quando Portugal se alinhasse definitivamente. Eram descontentamentos pessoais e choques entre interesses de grupos.

Água ao moinho veio se ajuntar quando o regente cai doente no inverno de 1805. Melancolia, vertigens, enfim, sinais identificados na época à loucura de sua mãe, pairavam sobre D. João. Os rumores fizeram o resto. Para a Corte e para o povo, o rei estava insano! O momento era ideal. Fidalgos e elementos da nobreza como o marquês de Penalva e o de Alorna, militares e magistrados se uniram para fazê-la regente em lugar de seu marido. A intriga adensou-se. Seus acólitos, para se identificar, beijavam-lhe as mãos e punham a mão no peito. Era um código. O clímax se deu quando Carlota foi denunciada. A fonte? Não se sabe com certeza. Uma antiga valida da princesa ou Domingos Vandelli. O resultado é que o príncipe acionou o intendente da polícia para que tudo pusesse a descoberto. Descoberta a trama, os responsáveis foram apenas afastados da corte. As penas brandas disfarçavam o mal maior: o desafeto e o divórcio já operado no casal.

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Não deu em nada. A conspiração se esvaziou. As rivalidades se expuseram e o Regente pode afastar a quem não lhe interessava. Carlota sai enfraquecida, tendo, contudo, revelado seu poder de fogo e de arregimentação de acólitos. Uma coisa é certa. Ela sabia fazer política. Em breve mostraria as garras novamente. E a transmigração da família real permitiu-lhe transferir suas ambições para abaixo do Equador – assunto já desenvolvido neste seminário internacional por uma especialista, a prof. Dra. Francisca Nogueira de Azevedo.

A chegada ao Brasil não pode ter agradado a esta mulher que tinha – como disse o cronista – “conhecimentos pouco comuns ao seu sexo”.  Aqui, suas contemporâneas  sentavam-se em esteiras, semi-desnudas, em cabecão branco sobre a pele, nas varandas dos fundos das casas, comendo com a faca ao a mão, cercadas de crianças, rodeadas de escravas que fiavam, costuravam, bordavam, faziam flores de papel, quando não cozinhavam. A família patriarcal era o padrão dominante entre as elites agrárias. A população urbana, contudo, que crescia desde o século XVIII, alimentava uma forte migração interna, do campo para a cidade, e externa, graças ao tráfico negreiro. Apesar dos problemas de abastecimento, higiene e habitação as cidades atraíam pela enorme oportunidade que ofereciam de mobilidade social e econômica, incentivando, simultaneamente a uma especialização profissional graças ao mercado de trabalho urbano, a miscigenação mais intensa. Havia fervilhamento de gente e de dinheiro, mas, não exatamente o “processo civilizatório” em andamento. Um choque para uma aristocrata vinda de cortes europeias!

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Neste ambiente acanhado e frustrada por seus planos políticos que não decolavam, D. Carlota não gozou de saúde. Indisposta com o clima da terra, a ele atribuía males de que sofria: “dores de cabeça, desordens do fígado, crises de epilepsia, acessos de tosse e escarros de sangue”. Carlota fugia. Para Suruí ou o sítio de Pau Grande onde se aliviava de suas vertigens. Sofria dos nervos. Eram os “ataquillos de nervios” que perseguia os Bourbons. Eram os “fumos” ou fumaças que subiam a cabeça e destemperavam o entendimento no dizer dos médicos da época. A cura? Atrair os humores ou fumos para a parte inferior do corpo, daí a rainha tomar sangrias, capazes de evacuar o humor melancólico. Sofria de “cólera”, enfermidade corporal materializada em gestos e palavras, anotadas por Oliveira Lima. Carlota gritava, insultava, agredia desafetos, mesmo se diplomatas estrangeiros, colocando-os, muitas vezes, em vexaminosa situação. Afinal, “os malos modos” tinham atravessado com ela o Atlântico. A culpa era da bílis. Somadas à cólera e a melancolia, a nostalgia e a saudade da pátria, de parentes e amigos, também era diagnosticada como doença. Carlota sofria de tudo isto.

Aquela que foi uma menina “vivaz e atolontrada”, se tomou uma mulher cuja vontade política foi abortada. Nos trópicos, encontrou poucas razões de satisfação. Os estudos até então realizados não apontam maiores detalhes desta gran senhora que segue desconhecida da maioria dos historiadores.  Carlota teve, contudo, poucas razões para guardar boas recordações do Brasil, já que as terras tropicais não foram férteis para o enraizamento de seus planos.- Mary del Priore

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 D. João e Carlota Joaquina: disputas políticas.

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