Já existia sobremesa nos tempos coloniais?

          Sim, já existia: “Sobre-mesa: a fruta ou o doce, que depois da carne ou do peixe se põe no fim da mesa”, explicava o dicionarista Bluteau. Nem podia ser diferente, na terra do açúcar. Na Europa, o ingrediente já tinha passado de droga ou remédio para a mesa de nobres, sempre recomendado como um facilitador da digestão. Com ele se faziam pudins, doces e molhos que acompanhavam a carne de caça. Os próprios animais caçados, javalis ou faisões, por exemplo, recebiam o glacê capaz de permitir a sua apresentação como se estivessem vivos, sobre as bandejas. Ou ainda, viravam recheio de pastéis, passados no açúcar e na canela, como se vê na Arte da Cozinha útil e necessária a todos que regem ou governam casa, da pena de Domingos Rodrigues, publicado em 1680. Nessa obra, já se vê o ainda conhecido “manjar real em tigelas coroadas”, os “ovos brancos” ou “moles, os “sonhos passados em açúcar e graxa” sempre apresentados como penúltimo ou último prato, servidos antes dos “doces frios” e das frutas.

         Do seu lado, os conventos portugueses aumentavam seus proventos graças à confecção de bolos, compotas, licores e outros regalos à base de muitos ovos e açúcar. Desde o reinado de Afonso IV, em 1325, a maio de 1834 quando as ordens religiosas foram dissolvidas, a doçaria conventual trazia nomes e aromas dignos de registro. Havia os confessionais: bolinhos-de-amor, esquecidos, melindres, paciências, raivas, sonhos, beijos, suspiros, caladinhos, saudades. Os que traziam a marca da vida religiosa: beijos-de-freira, triunfos-de-freira, fatias-de-freira, creme-da-abadessa, toucinho-do-céu, cabelos-da-Virgem, papo-de-anjo, celestes. E tinha ainda os satíricos: barriga-de-freira, orelhas-de-abade, sopapos, casadinhos, velhotes. Ou os cerimoniais: manjar-real, marqueses, morados, bolo-rei, etc.

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        Herança mourisca quando feitos com mel na forma de alfenim, alféola, pinhoada ou bolo de mel, muitas das receitas incentivaram bem guardados segredos de cozinha. O Caderno de Receitas de sóror Maria Leocádia, abadessa do convento de Santa Clara de Évora, datado de 26 de outubro de 1729, é um exemplo. Ele revelava informações que eram proibidas a estranhos: “este livro não se entregará a outrem que não seja pessoa desta casa, nem por cedência, nem por empréstimo por afetar os proveitos da feitura dos doces que nesta casa são feitos” – advertia o manuscrito.

         As broas de milho de Santa Clara, os queijinhos do céu, os pastelinhos de nata ou as fatias de Santa Clara revelam não só a criatividade das reclusas, mas também, a multiplicidade de apetrechos usados na doçaria: tachos, púcaros, carretilhas, colheres de recheio, formas de vários feitios – estrelas, coração, luas, flores – batedeiras de bacia, colheres e escumadeiras de madeira ou cobre, tábuas, cestinhas adornadas com papel recortado para a apresentação dos doces, covilhetes de barro onde eram acondicionados.

        “Fartes” ou “fartem da Beira” era o nome dado a um determinado tipo de bolo feito em casa ou vendido por confeiteiros que tinham, até 1755, em Lisboa, uma rua dedicada somente a eles. Um amigo de Luís de Camões, Fernão Rodrigues Lobo Soropita deixou dos deliciosos e inesquecíveis “fartes”, as suas impressões. Eles continham amêndoas, canela e cravo, além de pão ralado. Foram também oferecidos por Pedro Alvares Cabral aos tupiniquins, em Porto Seguro. Segundo Cascudo foi o primeiro doce-bolo vindo da metrópole e consumido na Colônia. Inúmeras receitas nasceram de sua fórmula clássica do bolo batido com ovos, manteiga, farinha de trigo e o finíssimo açúcar. Muitos outros bolos com nomes de fantasia ou pilhéria: “bolo busca-marido”, “orelhas-de-burro”, “come-e-cala”, “engorda-marido”, “beijo-de-estudante”, “brevidade”, “beijo-de-estudante”, “bolo-de-beata”. Em alquimia com o leite de coco, o milho, frutas e o amendoim, outros tantos bolos dominaram muitas combinações de sobremesa.

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       A mesa de doces era comum nas varandas nobres, nas festas religiosas e os rapazes elegantes costumavam levar rebuçados – um tipo de caramelo que podia ou não conter ovos – nos bolsos, para oferecer às senhoras. O saber-fazer da Ilha da Madeira circulava entre os amantes de doçaria. De lá vinham conservas de doces em que entravam especiarias vindas de longe: cravo das Molucas, noz moscada de Banda, pimenta e gengibre de Malabar, canela do Ceilão e açúcar do Brasil.

        Diz Câmara Cascudo que o bolo possuía função social indispensável na vida portuguesa, representando a solidariedade entre as pessoas. Figuravam sempre em noivados, casamentos, visitas de parida, aniversários convalescença, enfermidade ou condolências. Ele significava oferta, lembrança, prêmio, homenagem. O doce, diz ele, “visitava, fazia amizades, carpia e festejava”.

  • Texto de Mary del Priore.

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Negras vendiam quitutes nos tabuleiros: Carlos Julião.

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  1. Izabel Zuila Rosa de Azevedo

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