O governo nascido em 1964 foi definido certa vez, por um famoso político, como o “Estado Novo da UDN”. Definição que teria razão de ser. Pois durante duas décadas, políticos udenistas, representantes de parcelas importantes das elites empresariais e agrárias dificilmente obtinham mais de 30% de apoio dos eleitores. Por meio do regime, elas puderam programar várias de suas propostas em matéria de política econômica, como a diminuição do valor real dos salários e a abertura da economia aos investimentos estrangeiros. Mais, ele sublinha, a aliança entre udenistas e militares assegurou o impedimento de um modelo fascista, uma vez que os primeiros eram formalmente democratas liberais e, cabe lembrar, admiradores da sociedade norte-americana.
O novo governo queria um alinhamento estratégico com os EUA, para integrar o Brasil no chamado mundo ocidental sob a batuta do Tio Sam. O liberalismo adotado, explica Aarão Reis, pretendia uma redução drástica do Estado e uma abertura igualmente radical ao capital internacional, arrasando as limitações desejadas pelo governo Goulart. Adotou-se o Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg) afinado com as diretrizes do Fundo Monetário Internacional para debelar a crise econômica. A inflação, beirando os 80% e o baixo crescimento de 1,6% registrados em 1963 pediam medidas monetaristas ortodoxas: corte de gastos públicos, contenção de crédito, arrocho de salários. O economista Roberto Fendt lembra que ainda se desejava o fortalecimento do sistema de crédito, uma política salarial que assegurasse a participação dos trabalhadores no desenvolvimento da nação, o aumento da produtividade na agricultura e melhoria do emprego no setor rural, o estímulo da participação da mão de obra não-qualificada na construção civil e o ajuste da educação e do ensino às necessidades técnicas e culturais da sociedade. Saneamento financeiro, também. Havia um projeto ambicioso de constituir um mercado de capitais, incentivar as exportações e atrair investimentos de capitais privados. As empresas estrangeiras, concessionárias de serviços públicos, tiveram seus ativos negociados. Ofereceram-se, ainda, amplas garantias ao capital de risco, uma nova lei de remessa de lucros e reescalonamento das dívidas com os bancos privados e as instituições internacionais, afastando o fantasma da moratória. Ainda, a aliança com os EUA traduziu-se num congelamento das relações com o mundo socialista, hostilidade à revolução cubana e envio de um contingente de homens para a invasão da República Dominicana, como parte da força militar interamericana.
Os problemas, porém, começaram a surgir. Os investimentos de capitais internacionais não apareceram e a política econômica não apresentou resultados positivos. A inflação baixou, mas não foi domada: 86%, em 1964; 45% em 1965; 40%, em 1966. O crédito escasso enfraquecia o comércio e a indústria. O arrocho salarial oprimia os assalariados que não obtinham reajustes compatíveis com a inflação. O governo ia mal das pernas e a sociedade, controlada pelas forças da repressão, mostrava-se insatisfeita. Não se abandonou a tradição intervencionista do Estado nem o ideário de planejamentos. Foi criado o Banco Nacional da Habitação e um super-Banco-Central destinado a supervisionar a circulação do dinheiro. Para além da economia fraca, o descontentamento popular resultava das cassações e dos IPMs e censura truculentos. Nas grandes capitais, em reunião, passeata ou manifestação ouvia-se “Abaixo a ditadura!”.
Políticos que apoiaram o golpe como Lacerda e Magalhães Pinto começaram a se preocupar com as eleições. Era preciso mudar o jogo. Pediu-se a substituição do ministro Roberto Campos, do Planejamento e Octavio Gouveia de Bulhões, da Fazenda. Trabalhadores urbanos e rurais permaneciam em silêncio, diz Aarão Reis. A maioria parecia acomodada ou lutando pela sobrevivência em condições difíceis. Entre os intelectuais de esquerda predominava a ideia de que o governo dos “gorilas” teria um limite e que se caminhava para uma “teoria do impasse”, ou seja, as massas populares desiludidas passariam a posições radicais e revolucionárias capazes de “transformar os Andes numa Sierra Maestra”, diz o historiador.
A extinção dos partidos, em 1965, ensejara a criação de duas novas agremiações: a Arena ou Aliança Renovadora Nacional e o MDB, Movimento Democrático Brasileiro. O primeiro se estruturou nacionalmente, ramificando-se nos estados e municípios, dando cobertura ao regime em diferentes níveis. O segundo abrigava os grupos que lutavam pela normalidade democrática, embora sem nenhum programa radical. Em fevereiro de 1966, nascia o AI-3, definindo eleições indiretas para governadores, eleitos por um colégio de deputados estaduais. Prefeitos das capitais estaduais, por sua vez, seriam indicados pelos governadores e aprovados pelas respectivas Assembleias Legislativas.
As novas eleições presidenciais foram fixadas para outubro de 1966, quando eleito o general Arthur da Costa e Silva, representante do grupo “linha dura”. As eleições para o Congresso tiveram lugar em novembro e dezembro, e seus membros convocados para a realização de uma nova Constituição para o país, aprovada e promulgada no dia 21 de janeiro. No dia 15 de março de 1967, Costa e Silva tomou posse e os Estados Unidos do Brasil passaram a ser chamados de República Federativa do Brasil. Em meados de julho, morreu o general Castelo Branco num desastre aéreo no Ceará.
Até então, tudo pareceu fluir sem asperidades: o governo tinha de levar leis para serem apreciadas no Congresso e as pessoas podiam responder a processos criminais em liberdade. Esperava-se que os militares promovessem eleições. Com humor, o jornalista Adirson de Barros chamava à atenção para um adjetivo que passou a frequentar as conversas: “subversivo”. A palavra detonaria uma verdadeira caça às bruxas e se tornou sinônimo de quem estivesse contra o governo. Quantas interpretações para as mesmas letras: “Há os mais variados tipos de subversão e este país está repleto de subversivos. Lacerda quando exerce o direito democrático de espancar governos e sistemas de governo vira subversivo. Quando o fazendeiro Alarico Teixeira, dos sertões pernambucanos, fecha seus engenhos para não pagar o salário-mínimo rural aos seus trabalhadores é subversivo, pois está agravando a tensão social numa região crítica. O Sr. Magalhães Pinto quando se rebelou contra o governo Jango, estava exercendo o direito de ser subversivo – a subversão anticomunista e poderia ser enquadrado na Lei de Segurança, caso perdesse […] assim concluímos que quase todos somos subversivo, uns perigosos, outros menos, ainda outros da esquerda, muitos da direita, uns amorosos, outros incompreendidos, tantos patriotas – mas subversivos”.
O humor negro do jornalista convivia, porém, com fatos: de janeiro a dezembro de 1967, guerrilheiros ou “subversivos” praticaram pelo menos vinte assaltos a banco e automóveis, execuções, ataques a quartéis e atentados a bomba que resultaram em nove mortes e causaram ferimentos em soldados, seguranças de banco, motoristas e gente que passava nas ruas. Sem contar as “barberagens”: a execução de um major alemão por engano e de um capitão americano, na frente da família. O historiador Marco Antonio Vila assinala que “a opção pela luta armada, o desprezo pela luta política e pela participação no sistema político e a simpatia pelo foquismo guevarista antecedem o AI-5, quando de fato houve o fechamento do regime”.
No dia 13 de dezembro de 1968, teve início aquela que é considerada pelos historiadores a fase mais dura da Ditadura Militar. O AI-5 dava ao presidente o poder de cassar mandatos, intervir em estados e municípios e suspender direitos políticos de qualquer pessoa. Além disso, a tortura foi liberada em resposta às várias manifestações de rua. Também foi suspenso o Habeas Corpus para crimes políticos e proibidos os protestos. Porém, o Jornal do Brasil conseguiu manter o bom humor na edição do dia seguinte. Na rubrica meteorologia anunciava: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por ventos violentos. Máxima: 38 graus em Brasília. Mínima: 5 graus em Laranjeiras”.
- Texto de Mary del Priore.
sensacional artigo sou estudante de historia