Gregório de Matos e os “amores lésbicos”

Por Luiz Mott.

Em nosso país, além das referências dos cronistas quinhentistas às guerreiras Amazonas e às varonis Çacoaímbeguira dos Tupinambá, famo­sas por preferirem a morte a terem de casar-se com o sexo oposto, salvo erro, a mais antiga página literária escrita no Brasil, e certamente também a primeira em todas as Américas, a referir-se explicitamente aos amores lésbicos, é de autoria do baiano Gregório de Matos e Guerra (1636-1695). Poeta irreverente em matéria de religião e moral, o Boca do Inferno inúmeras vezes manifesta-se empedernido machista, quer ridicularizando e mesmo denunciando à Inquisição os sodomitas baianos, quer referindo-se às mulheres, sobretudo às negras e mestiças, como reles objetos sexuais, vis objetos a serem penetrados por qualquer das vias, seja a natural dian­teira, seja pela cobiçada traseira. Certa feita o feitiço virou contra o feiti­ceiro, pois o sátiro poeta foi denunciado junto ao Tribunal do Santo Oficio de ter blasfemado gravemente defendendo que Nosso Senhor Jesus Cristo era homossexual (“nefando”).[1] Afirmação, diga-se en passant, que muitos de nossos antepassados menos conformistas em matéria religiosa igual­mente repetiram, conforme registram os arquivos inquisitoriais: A misogi­nia do Boca do Inferno transparece em muitos poemas, esculhambando agressivamente as mulheres que rejeitaram suas solicitações lascivas. Foi exatamente numa de suas muitas investidas eróticas que o poeta depa­rou-se com uma lésbica, Nise, dedicando-lhe o poema que traz o título “A uma dama que macheava outras mulheres”[2]

Embora não conste em nossos dicionários antigos o verbo “ma­chear”, Aurélio consigna-o como “cópula do macho com a fêmea” – e foi inquestionavelmente neste sentido que Gregório o empregou, tanto que no mote introdutório completa: “Namorei-me sem saber, esse vício a que te vás, que a homem nenhum te dás, e tomas toda a mulher:” Eis como o tro­vador descreve a lésbica Nise:

“Foste tão presta em matar-me, Nise, que não sei dizer­-te,

Se em mim foi primeiro o ver-te, do que em ti o contentar-me

Sendo força o namorar-me, com tal pressa houve de ser,

que importando-me aprender a querer, e namorar,

por mais me não dilatar namorei-me sem saber

A saber como te amara, menos mal me acontecera,

pois se mais te com prendera, tanto menos te adorara:

a vista nunca repara, no que dentro d’alma jaz,

e pois tão louca te traz que só por Damas suspiras,

não te amara, se tu viras, esse vício a que te vás.

Se por Damas me aborreces absorta em suas belezas,

a tua como a desprezas, se é maior que as que apeteces?

Se a ti mesma te quisesses, querendo, o que a mim me praz,

seria eu contente assaz, mas como serei contente,

se por mulheres se sente, que a homem nenhum te dás?

Que rendidos homens queres, que por amores te tomem?

Se és mulher não para homem, e és homem para mu­lheres?

Qual homem, ó Nise, inferes, que possa senão eu ter

valor para te querer? Se por amor nem por arte

de nenhum deixas tomar-te, e tomas toda a mulher!”

“Nise” com certeza é um nome fictício, inspirado na mitologia grega (“Nike” = vitória), usado igualmente por outros poetas do período colo­nial sem conotação lesbiana. Discreto, Gregório de Matos preferiu escon­der a verdadeira identidade desta mulher que macheava outras damas: tal cuidado certamente foi por não afastar de seu campo erótico a bela moçoila, pois em outras ocasiões, proclamou em alto e bom tom os nomes completos dos sodomitas e seus parceiros – entre eles, nada menos do que o governador da Bahia, d. Câmara Coutinho!

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Segundo o Boca do Inferno, Nise era mulher muito bela, uma dama, isto é, “senhora nobre, de qualidade”. Era dada ao “vício” (“defeito moral, tendência para o mal, erro”) de suspirar por outras damas. Ousada, chega­va a tomar “toda a mulher”. Desenvoltura que nos faz lembrar da mais aventureira e destemida safista da Bahia quinhentista, Felipa de Sousa, in­famada de namorar e de ter roçado com “muitas mulheres e moças, altas e baixas e também dentro de um convento”. (…)

Nise parece ser uma das poucas lésbicas de nosso período colonial que vivia celibatária – “a nenhum homem te dás” -, pois a maior parte das denunciadas na Inquisição, conforme já noticiamos, ou eram casadas ou viúvas. O casamento no mundo antigo era uma exigência social tão forte, que a vida de um solteiro tomava-se verdadeiro suplício: a rígida divisão sexual do trabalho impunha o matrimônio como solução necessária para ambos os sexos ao chegar na idade adulta, sobretudo para o sexo frágil. As Constituições do Arcebispado da Bahia autorizavam o matrimônio de me­ninas a partir dos 12 anos e dos meninos dos 14 (§ 267), sendo que basta­vam 7 anos de idade para ambos os sexos poderem realizar o chamado “desposório de uturo”. Para alguns, como ocorre ainda hoje em dia, casar-se era a maneira ideal de disfarçar uma homossexualidade clandestina.(…)

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Lastimavelmente, Nise é a primeira e talvez única página literária consagrada totalmente a uma lésbica no nosso período antigo: o puritanismo literário imposto pela Inquisição até sua extinção (1821) censurava, através da Mesa Censória do Santo Ofício, qualquer referência ao abomi­nável pecado de Sodomia, inclusive ao tribadismo, chamado pelos teólogos de sodomia foeminarum. Enquanto a primeira tradução francesa dos poemas de Safo data de 1777, somente pelos meados do século passado que Almeida Garret tradu­ziu três de suas odes: A Vênus, Beleza e Bondade, O Sacrifício.

O desinteresse e mesmo a desconsideração dos literatos do sexo forte pelo que as mulheres faziam no interior dos gineceus, seja nas casas ­grandes, seja nas senzalas ou casebres pelo Brasil afora, é um outro fator que explica o pouco caso com que abordaram a homossexualidade feminina. É o mesmo Gregório de Matos que em outros poemas sugere alas­trar-se o tribadismo não apenas entre as damas, mas inclusive em ambientes populares, como num pagode de negras por ocasião da festa de Nossa Senhora do Amparo – protetora dos pardos: “Macotinha a foliona, bailou rebolando o cu, duas horas com Jelu, mulata também bailona”. Com a ex­citação deste bailado, o terreiro torna-se verdadeiro campo de pancadarias, que se arrefece somente após os comes e bebes. Aí então o poeta descreve uma cena que sugere práticas homoeróticas entre as negras baianas, juízas e mordomas da referida festa da Virgem Maria:

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“Maribonda, minha ingrata, tão pesada ali se viu,

que desmaiada caiu, sobre Luiza Sapata:

viu-se uma e outra mulata em forma de sodomia,

e como na casa havia tal grita e tal confusão,

não se advertiu por então o ferrão que lhe metia.” 

Seria o apelido “Sapata” uma associação semelhante à feita contem­poraneamente entre as lésbicas como mulheres que usam sapatão? Tudo nos leva a concluir positivamente, pois noutro verso diz o trovador:

“Eis aqui vêm as Sapatas, porque uma é sua madrinha

e todas por certa linha da mesma casa mulatas…”

A referência de Gregório à sodomia de Maribonda com Luiza Sa­pata, inclusive “ao ferrão que lhe metia” (um falo artificial ou um clitóris avantajado?), não deixa dúvida de que neste pagode de negras e mulatas Safo se sentiria bem à vontade. Não é por menos que em muitos poemas o Boca do Inferno compara a Bahia às devassas Sodoma e Gomorra: pudera! Além de Nise, Luiza Sapata e do próprio governador, só numa inquirição realizada em Salvador pouco antes do poeta partir para a Universidade de Coimbra foram denunciados 18 sodomitas escandalosos, alguns que che­gavam ao excesso de amar seus cúmplices até na torre da igreja do próprio Colégio dos Jesuítas, divulgando-se em Salvador a heresia de que o próprio Cristo e seus apóstolos eram sodomitas!

[1] Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Cardernos do Promotor nº 58,1685.

[2] Matos e Guerra, Gregório de. Obras Completas, 7 volumes, Salvador, Janaina, 1965.

  • Texto extraído do livro “O Lesbianismo no Brasil”, de Luiz Mott. Porto Alegre, Editora Mercado Aberto, 1987.

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“O banho de Bate Seba”, de Sebastiano Ricci.

3 Comentários

  1. Nice(Nike) Aparecida de Jesus
  2. Albertina Granzer
  3. Albertina Granzer

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