O quarto volume da série “Histórias da Gente Brasileira”, de Mary del Priore (editora LeYa), tem lançamento previsto para o mês de maio. Na obra, a historiadora mostra que “em menos de quarenta anos, a vida da gente brasileira mudou mais do que em quatro séculos.” Um dos fatos mais importantes ocorridos nesta época foi o golpe militar de 1964, que resultaria em uma ditadura civil-militar que ficou no poder por 21 anos. “Sobre os chamados Anos de Chumbo, vamos tentar restituir as complexidades. Não fazer a história de mocinhos ou bandidos”, destaca Mary. Confira alguns trechos do livro:
O historiador Maurício Horta lembra que a facilidade em derrubar Jango pode passar a ideia de militares como grupo coeso e disciplinado. Na verdade, foi o oposto. Quando as tropas do general Olympio Mourão partiram de Juiz de Fora, MG, em direção ao Rio, os próprios conspiradores foram pegos de surpresa. “A insurreição estava envolta numa nuvem que se parecia ora com uma quartelada sem futuro, ora com uma tempestade de boatos”, escreveu o jornalista Élio Gaspari. As forças armadas estavam divididas. Por um lado, Jango contava com oficiais fiéis, soldados e suboficiais esquerdistas que vinham ameaçando a hierarquia militar. Do outro lado, no campo conservador, a elite saída da Escola Superior de Guerra juntava-se ao IPES para conspirar contra Jango. Já os oficiais de média e baixa patentes se preocupavam em lutar contra o comunismo. Eram considerados como “a linha dura”. O plano dos generais Castelo Branco, Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel era coordenar uma rede de militares golpistas. Tropas de Minas Gerais e São Paulo marchariam para o Rio e lá tomariam o ministério da guerra. Só que o núcleo mineiro se exaltou antes da hora. O General Mourão não quis ficar fora da história e, com o apoio do governador Magalhães Pinto, marchou para o Rio no dia 31 de março, mais de uma semana, antes do combinado.
Celso Castro sublinha que a falta de reação do governo de Jango e dos grupos que lhe davam apoio foi notável. Não se conseguiu, por exemplo, articular uma reação dos militares legalistas. Também fracassou uma greve geral proposta pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) em apoio ao governo. Em busca de segurança, Goulart viajou no dia 1. de abril do Rio de Janeiro, onde se encontrava, para Brasília, e em seguida para Porto Alegre, onde Leonel Brizola tentava organizar a resistência, a exemplo do que ocorrera na Cadeia da Legalidade, em 1961. Apesar da insistência de Brizola, Jango desistiu de um confronto militar e seguiu para o exílio no Uruguai, de onde só retornaria ao Brasil para ser sepultado, em 1976.
Antes mesmo de Jango deixar o país, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, já havia declarado vaga a presidência da República. O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assumiu interinamente a presidência, conforme previsto na Constituição de 1946 e como já ocorrera em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros. A gente brasileira não perdeu o bom humor e o apelidou de “presidente-Modess”, então, um novíssimo absorvente íntimo feminino: “Está sempre no melhor lugar, nos piores dias, para evitar derramamento de sangue”. O poder real, no entanto, encontrava-se em mãos militares.
Aarão Reis explica que na desordem que se seguiu a derrocada de Jango, houve uma disputa surda entre lideranças que compunham a complexa frente social e política. “Como acontece nessas horas, a ousadia e a determinação compensaram os mais decididos” – ele explica. No dia 2 de abril, o general Costa e Silva enviou uma notificação a todos os comandos militares informando-os que, em virtude de ser o membro do Alto Comando mais antigo, assumiria a chefia do Exército. Desse modo, Costa e Silva autonomeava-se Comandante-em-Chefe do Exército, cargo habitualmente exercido pelo Presidente da República. Ele organizou, no dia 2, o “Comando Supremo da Revolução”, composto por três membros: o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo (Aeronáutica), o vice-almirante Augusto Rademaker (Marinha) e ele próprio como representante do Exército e homem-forte do triunvirato.
É consenso entre historiadores que a falta de resistência ao golpe não deve ser vista como resultado da derrota diante de uma bem-articulada conspiração militar. Foi clara a falta de organização e coordenação. Mais do que uma conjuração única, centralizada e estruturada, a imagem mais fidedigna é a de “ilhas de conspiração”, com grupos unidos ideologicamente pela rejeição da política pré-1964, mas com baixo grau de articulação entre si. Não havia um projeto de governo bem definido, além da necessidade de se fazer uma “limpeza” nas instituições e recuperar a economia. O que diferenciava os militares era a avaliação da profundidade necessária à intervenção. Os que apoiaram a “revolução” justificaram seus atos afirmando que seu objetivo era restaurar a disciplina e a hierarquia nas Forças Armadas, e destruir o “perigo comunista” que pesava sobre o Brasil. Eles também acreditavam que o regime democrático instituído no Brasil, após 1945, não fora suficiente para se contrapor a esse “inimigo”.
Ordem, paz, anticomunismo e cristianismo eram palavras de ordem. Em nome delas, nos primeiros dias após o golpe, uma violenta repressão atingiu os setores politicamente mais mobilizados à esquerda no espectro político, como a União Nacional dos Estudantes, a Confederação Geral dos Trabalhadores, as Ligas Camponesas e grupos católicos como a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Ação Popular (AP) – conta Castro. Milhares de pessoas foram presas de modo irregular, e casos de tortura foram comuns, especialmente no Nordeste. O líder comunista Gregório Bezerra, por exemplo, foi amarrado e violentamente arrastado pelas ruas de Recife.
No dia 9 de abril, foi baixado um primeiro Ato Institucional, pela Junta Militar. Ele dava ao governo militar o poder de alterar a constituição, cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos por dez anos e demitir, colocar em disponibilidade ou aposentar compulsoriamente qualquer pessoa que tivesse atentado contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública. Determinava ainda eleição indireta para a presidência da República no dia 11 de abril de 1964, estipulando que fosse terminado o mandato do presidente em 31 de janeiro de 1966, quando expiraria a vigência do ato. Dois dias depois, o General Humberto de Alencar Castello Branco foi eleito Presidente pelo Congresso Nacional, com 361 votos para completar o mandato de Jânio Quadros / João Goulart, que iria até o final de 1965.
O ciclo de presidentes militares teve início. No dia 21 de outubro de 1965, foi promulgado o AI-2, determinando eleições indiretas para presidente e dissolvendo todos os partidos existentes, desde 1945. Renasceram tempos de conservadorismos, quando o país estremunhava para se livrar deles. No dia 13 de dezembro de 1968, teve início aquela que é considerada pelos historiadores a fase mais dura da Ditadura Militar. O AI-5 dava ao presidente o poder de cassar mandatos, intervir em estados e municípios e suspender direitos políticos de qualquer pessoa. Além disso, a tortura foi liberada em resposta às várias manifestações de rua. Também foi suspenso o Habeas Corpus para crimes políticos e proibidos os protestos. Porém, o Jornal do Brasil conseguiu manter o bom humor na edição do dia seguinte. Na rubrica metereologia anunciava: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por ventos violentos. Máxima: 38 graus em Brasília. Mínima: 5 graus em Laranjeiras”.
- Texto extraído de “Histórias da Gente Brasileira – Volume IV”, editora LeYa, a ser lançado em maio.
- Leia também: https://historiahoje.com/nos-poroes-da-ditadura/ e https://historiahoje.com/ditadura-subversao-e-o-ai-5/
Muito boa reportagem.