Esse friozinho me fez lembrar de uma receita tradicional e bem apropriada para esse clima: a canja. E de uma figura história muito querida pelos brasileiros, D. Pedro II, que adorava o prato. Com sua aversão à pompa, seus hábitos à mesa eram simples: comia rapidamente e logo se retirava para outros aposentos, conta José Murilo de Carvalho, em “D. Pedro II” (Companhia das Letras, 2007). Além do sorvete de pitanga (do qual já publicamos a receita nesse blog), o imperador gostava mesmo é do prosaico caldo à base de arroz e galinha, que, dizem os mais velhos, é um ótimo alimento para doentes e convalescentes.
Em “Condessa de Barral – a paixão do Imperador”, (Editora Objetiva, 2006), Mary del Priore descreve assim os jantares no palácio:
“No menu, sempre uma canja. A comida era ruim, não se tomavam vinhos e o imperador engolia a refeição em segundos. Não havia a ‘arte da conversação’ tão prezada no exterior. Não só os serviços – ou seja, a sucessão de pratos – era praticamente ignorada, mas os empregados estavam sempre mal vestidos. Nem gourmet, nem sommelier, o imperador só gostava de doces: mães-bentas, suspiros e goiabada. Quanto à atividade física, considerava-a quase desprezível. Não gostava de caçar nem de matar animais. Menos ainda de caminhadas que o levassem a “ruminações” ou de jogos de bola. Para uma vida completa bastava, segundo ele, ‘alimentar os sentimentos do coração e os pensamentos do espírito”.
De acordo com “Os Banquetes do Imperador”, de Francisco Lellis e André Boccato (Editora Senac, 2013), a canja é originária da Índia, e a palavra deriva de “cañji” que significa “arroz com água”. No século XIX, os portugueses acrescentariam galinha à receita, e o prato conquistaria assim os paladares lusitanos e brasileiros. No Rio Imperial, confeitarias e restaurantes iriam inovar acrescentando presunto à receita, que era conhecida por diversos nomes, como Canja à la brésilienne ou Sopa do Imperador.
A dinastia Bragança era apreciadora da canja e D. Pedro II seguiu a tradição. O imperador tomava o seu caldo de galinha ou macuco nos intervalos dos espetáculos de teatro. Os autores destacam que João Rialto, em “Álbum das Glórias”, satirizou os hábitos de D. Pedro II, inclusive com uma caricatura, sem se esquecer de seu prato preferido.
“Nos intervalos de cada ato, é servida a Sua Majestade, no camarote imperial, uma canja de galinha, sem distinção de cor política, tanto faz que seja de galinha preta ou de galinha vermelha. Esta canja é uma das mais substanciais instituições que um estômago reinante pode dever a munificência d’um soberano, depois das 11 e meia – quando o teatro acaba às duas” .
Rialto ainda afirmava que D. Pedro II tinha uma dependência “quase genética” dos hábitos alimentares de seu avô, D. João VI:
“O neto, porém, era sóbrio, não deixando de herdar do avô a preferência aos frangos, que em canja era seu alimento predilecto. Comia rapidamente, sem gosto nem arte, o que era um suplício dos camaristas, que viviam esfomeados por falta de tempo para comerem. Isso obrigava o visconde de Itapagipe, seu camarista mais estimado, a trazer sempre provisões nas algibeiras”.
- Texto de Márcia Pinna Raspanti.
Imagens: “Os Banquetes do Imperador”, de Francisco Lellis e André Boccato (Editora Senac, 2013).
Caricatura de D. Pedro II.