Em época de eleições, um dos temas mais discutidos é um velho e conhecido mal: a corrupção. A troca de acusações entre os candidatos nos dá uma amostra de como esta prática doentia está entranhada entre nós. Infelizmente, alguns ainda acreditam que basta trocar as autoridades para que a corrupção seja varrida do Brasil. A verdade é que sai governo, entra governo, mudam-se os sistemas, implantam-se e desfazem-se ditaduras, mas a corrupção continua sempre forte. A situação é complexa, e a História nos mostra que a distância entre Estado e sociedade é uma das causas de tantos desmandos. Quem sabe o passado nos dá pistas de como começar a mudar?
Em 1877, o escritor Tobias Barreto já comparava os brasileiros, povo e autoridades, a viajantes que se reuniam à noite numa casa de rancho, mas que ao amanhecer seguiam caminhos distintos, impassíveis diante dos tormentos alheios. Manoel Bonfim denunciou a vida parasitária da qual participavam órgãos e classes sociais na forma de agentes da administração e dos monopólios. Há mais de 50 anos, o jurista Raimundo Faoro escreveu um clássico sobre como o país foi sempre governado por uma comunidade de burocratas capazes de usar um cipoal de leis para encobrir sua própria incompetência. A lista, enfim, dos que apontaram os desdobramentos dessa separação é longa. O que vale destacar aqui é uma história de divórcio entre Estado e Sociedade, gerando uma estrutura feita de clientelismo e corrupção que atravessou, quase intocada, 500 anos de história.
Comecemos do começo: nos primeiros anos da colonização, as ligações pessoais e os laços familiares entre senhores de engenhos de açúcar e funcionários do governo português favoreciam o mau funcionamento da máquina administrativa. Quando petições e pedidos de auxílio financeiro esbarravam na inércia político-administrativa metropolitana, tentava-se conseguir, pela corrupção, influenciar ou não a aplicação de determinadas leis na Colônia. Os que tinham magistrados na família podiam suborná-los ou fraudar normas, contando com seu silêncio.
O Tribunal da Relação do Brasil, criado em 1609, rapidamente notabilizou-se como uma instituição corrupta. Numa aparente, apenas aparente, contradição, os colonizados pulavam em sua defesa cada vez que a Coroa agia contra os
juízes explicitamente venais. Esse coito infernal era bom para ambos os lados. A Justiça que submetia os moradores da América portuguesa era rapace. A voracidade de meirinhos, escrivães e juízes, insaciável. Exatamente como a que revelou, 500 anos depois, o juiz Nicolau! Enganavam-se, com o maior descaramento, as partes litigantes. Certos magistrados alegavam mesmo que seus emolumentos tinham de ser pagos pelas partes, abrindo as portas para as maiores extorsões. O costume, então dominante, de arrendamento de cargos públicos, favorecia a roubalheira. Nada mais imediatista do que a relação dos funcionários públicos com o Brasil. Muitos deles removidos da Corte por causa de dificuldades financeiras, dirigiam-se à colônia para resolver tal problema no tempo mais curto possível. Manter-lhes “as mãos
ocupadas” ou “as rodas azeitadas” foram expressões correntes no século XVIII para definir não sua preocupação com a coisa pública, mas com seu próprio bem. Bem, ou melhor “bens”, amealhados à custa do interesse coletivo.
Um exemplo concreto? A relação estreita entre bandidos que infestavam o distrito da Mantiqueira, na comarca do Rio das Mortes, no final do século XVIII e as autoridades locais. Vestidos com as fardas dos integrantes das chamadas Patrulhas do Mato, facínoras que respondiam pelo nome de Mão de Luva ou Montanha, assaltavam e matavam contrabandistas de ouro, crimes com os quais as autoridades não pareciam se importar. Mais. Os comandantes temiam prendê-los, pois deixados em
cadeias precaríssimas logo fugiam jurando vingança. Integravam tais grupos alferes, cabos e soldados mostrando bem a que ponto os limites entre a lei e o crime estavam embaralhados. Não é à toa que um dos mais importantes libelos seiscentistas contra a corrupção, o famoso A arte de furtar, anunciava que entre os funcionários os maiores ladrões eram aqueles que tinham por ofício livrar o povo… dos ladrões! Coisas do “tempo do Onça”? Não.
No final do século XIX, auge da obsessão higienista das autoridades nas grandes cidades como São Paulo, então comparada a Manchester, os membros da Força Pública comprometida com o combate à vadiagem e à perseguição a cafetões, jogadores, passadores de moeda falsa ou de “contos do vigário” eram sistematicamente denunciados pela imprensa por alcoolismo e associação com o jogo do bicho. Procurava-se tirar o máximo proveio da posição de “autoridade policial”. A extorsão era uma forma costumeira de complementação salarial. A “banda podre” não é de hoje.
Nossa elite, por seu lado, nunca fez papel melhor. No Rio de Janeiro, quando da vinda da família real, não hesitou-se em aumentar a contribuição fiscal para manter a Corte e seu aparato burocrático. Mas, em troca, pedia títulos honoríficos que a distinguisse do restante da população. Era dando que se recebia. Na gangorra do comércio internacional primeiro com o açúcar e depois com o café — equilibrava-se econômica e politicamente por intermédio do jogo de influências, de compadrio, das relações de amizade e parentesco, práticas arcaicas utilizadas desde a época dos senhores de engenho. No final do século XIX, juristas e depois engenheiros integraram a máquina do Estado. Pelo menos na teoria, procuravam redimir as enormes distâncias entre Estado e Sociedade. A Ciência seria o caminho para a civilização. Na prática, não tiveram sucesso.
Depois do Estado Novo e da Segunda Guerra Mundial, a necessidade de operacionalizar políticas econômicas guindou os economistas à máquina do governo. Nossos mandarins, no dizer do economista Carlos Lessa, integraram “uma rede de iniciados na decifração do Olimpo financeiro, interpretando e decodificando seus sinais”. Chancelados pelos centros internacionais, tornaram-se encarregados de gerir os negócios coloniais.
Nossa história está,— assim, repleta de grupos que se organizaram à revelia do Estado e cujo objetivo ora foi ocupar o seu lugar — como fizeram os senhores de engenho, no passado —, ora apropriar-se de seu espaço — caso dos economistas, hoje. Alguns dos resultados dessa longa estrutura histórica estão aí: as revelações constantes das roubalheiras, nos governos e fora deles, a impunidade explícita, a participação de funcionários públicos e policiais em esquemas ilícitos, a empulhação. Conhecer melhor e explicar aos nossos filhos os cinco séculos de uma melancólica história talvez nos ajude a mudar os próximos 500 anos. – Mary del Priore.
Antes de mais nada, parabéns por mais um artigo interessante e de qualidade superior.
Entretanto, sem querer polemizar, vejo-me na necessidade de discordar da colocação feita no comentário anterior de que era uma “Corte que tinha como objetivo explorar e extorquir, e não colonizar”.
Extorquir quem? Nossa população indígena não possuía riquezas, ao contrário dos Maias, Astecas e Incas, povos desenvolvidos – inclusive no saber – que foram praticamente aniquilados…
O processo da exploração (colonização) das terras portuguesas na América era altamente dispendioso para um país 96 vezes menor que o Brasil (menor que o pequeno estado de SC), cuja população foi chamada a participar fortemente da tarefa de colonizar não só o Brasil, mas também as colônias lusitanas na África e no Médio e Extremo Oriente.
Portugal derrubou todas suas matas nativas – que jamais se recuperaram – para construir centenas, milhares de embarcações, fundamentais para seu processo colonizador. Portanto, parece compreensível que as mesmas naus e caravelas que traziam catequizadores, agentes da lei, colonos, aventureiros como os Bandeirantes, etc. -, além de ferramentas, mobiliário, vestuário, medicamentos, temperos, alfaias agrícolas e tudo o mais necessário ter aqui para servir a quem vinha para cá -, levassem na volta o pau-brasil que ajudava a custear parte deste processo colonizador, o mesmo aplicando-se a outras madeiras, ao ouro, à prata, aos diamantes, ao açúcar, ao café, ao tabaco, às frutas tropicais, etc.
Entretanto, a prata levada do Brasil pelos portugueses foi uma ínfima parte da prata levada de Potosi pelos castelhanos (dizem por lá, até hoje, que foi tanta, que daria para fazer uma ponte Potosi-Madrid…).
Se por um lado foi significativo o que o Brasil pode contribuir para custear o processo de colonização, de outro é importante destacar que este processo também foi custeado por tudo que os lusitanos conseguiram gerar de lucro com a venda do que levaram das suas colônias e feitorias instaladas na África (por exemplo, o marfim e o ouro de Mina e de Monomopata, na África, e de Sumatra, na Ásia), na Índia e na Ásia, como as especiarias (gengibre, canela, pimenta, cravinho, noz moscada, anis estrelado, cravo, coentro, macis, maça, mostarda, açafrão, etc.), cobre, pérolas, corais, mobiliário, ourivesaria, prataria, laca, madrepérola, sândalo, pedras e madeiras preciosas (como o ébano, a teca e o sissó), seda, porcelanas, olarias, couros, peles, almíscar, gado, etc.
Penso ser necessário enxergar este processo com os olhos na realidade daquela época (um velho mundo ocidental e terras de um novo mundo a serem descobertas e conquistadas), e não apenas com a realidade do Brasil de hoje, que manteve coesa e crescente a sua área territorial (algo sem preço) graças à sabedoria e à determinação dos lusos…
Obrigada por suas considerações, José. O texto procura analisar a corrupção na nossa sociedade e suas raízes históricas. A autora destaca que a Colônia era vista como uma fonte de riqueza para Portugal; os portugueses que aqui chegavam não procuravam, na maioria das vezes, um novo lar, mas uma oportunidade de mudar de vida para retornar à terra natal. A proposta do artigo é refletir sobre como o modelo de colonização implantado aqui influenciou a nossa cultura política.
Parabéns, Mary e Márcia. Este foi um dos melhores artigos já publicados aqui.
De fato, tudo o que acontece em uma sociedade tem a sua origem. A corrupção, naturalmente, também.
Não se poderia esperar coisa melhor de uma Corte que tinha como objetivo explorar e extorquir, e não colonizar, as terras tupiniquins.
Infelizmente, em pleno século XXI, nossos governantes continuam roubando; nossa polícia é uma das piores do mundo; e nosso povo continua escolhendo errado.
Será que o Chapolim Colorado poderá nos ajudar?
Obrigada, Osvaldo. O tema é para a gente refletir bastante…