As mulheres perfazem quase 52% dos eleitores do país. Durante os debates políticos, um tema ligado aos direitos das mulheres sempre aparece: aborto. Ele é fantasma antigo. No século XVIII, escritores já comentavam o fato. A ingestão de ervas, carregar fardos ou dar pulos eram manobras conhecidas para fazer o fruto renunciar. Em caso de desespero recorria-se a todo o tipo de objeto pontudo: de agulhas a canivetes, de colheres a tesouras ou espetos de cozinha. Temia-se mais a gravidez indesejada do que a morte por infecção. Viajantes estrangeiros de passagem pelo Brasil observaram a venda de ervas abortivas, como a arruda, pelas ruas das cidades. Escravas vendeiras costumavam oferecê-la de porta em porta. Entre mulheres murmuravam-se fórmulas para dar fim ao problema: provocar vômitos e diarreias violentos era uma delas. Todas conheciam alguma solução.
Até o século XIX, a Igreja tinha certa tolerância em relação ao aborto. Acreditando que a alma só passava a existir no feto masculino, após quarenta dias da concepção, e no feminino, depois de oitenta, o que acontecesse antes da “entrada da alma”, não era considerado crime nem pecado. Tudo se complicava, porém, se pairasse dúvidas sobre se o aborto era resultado de uma ligação extra-conjugal.
Leis discutiam se o aborto fora voluntário ou involuntário. A partir de 1830, uma das leis condenava a cinco anos de trabalho forçado quem praticasse o aborto, ainda que com o consentimento da gestante. A abortadeira era presa e a mãe escapava impune. A partir de 1890, o Código Penal da República passou a punir a mãe: cinco anos de reclusão com pena reduzida a um terço, penas em caso de “defesa da honra”. Ficavam isentos, os abortos realizados para salvar a vida da gestante.
No início do século XX, o controle da natalidade se converteu em questão de interesse público: o problema “populacional” era importante para pensar-se o desenvolvimento nacional. O aborto entrou na mira das autoridades. Isso foi importante, pois até poucas décadas atrás, contraceptivos e abortivos eram anunciados em jornais e revistas, vendidos em farmácias ou a domicílio. Muitos “medicamentos para mulheres” disfarçavam abortivos.
Durante o Estado Novo, valorizou-se a ideia de coesão social para fortalecer a pátria. Esse apelo implicava na definição de um modelo de família que solucionaria todos os problemas: imoralidade, sensualidade e indolência. O papel da mulher não era na rua, trabalhando, mas em casa, cuidando dos filhos. Nada de controlar o tamanho das famílias, mas de cuidá-la para não produzir casamentos desfeitos com suas conseqüências: alcoolismo, delinquência, marginalidade. Em 1940, o novo Código penal definia prisão de um a três anos para a gestante. Acrescia, contudo, que em caso de estupro ou de risco de vida, admitia-se a operação. Apesar dos cuidados legais, poucas mulheres foram punidas por aborto voluntário. A maioria tinha que enfrentar a repreensão social: polícia em casa, depoimentos de parentes e vizinhos, fofocas e humilhações. Acusadas de “amantes” de alguém, esse “alguém”, contudo, raramente dava as caras.
Pesquisas sobre quem abortava indicam que eram poucas amantes e muitas, as mães de família: mulheres casadas, com vários filhos, tentavam a todo o custo impedir o crescimento da família já numerosa. Sabiam que mais filhos, seriam sinônimo de maior pobreza. Receitas para “fazer descer as regras”, a base de artemijo, cipó milone, casca de romã foram eficientes fatores de controle familiar, por décadas. Hoje, calcula-se em torno de 750.000 a 1,4 milhões de abortos no Brasil, por ano. O clandestino ainda é responsável ela morte de muitas mães. E ninguém fala disso…
- Texto de Mary del Priore.