O vinho português reinou absoluto. Era solicitado à mesa dos engenhos ricos e constava da hospitalidade dos conventos. Em recepções, as autoridades não economizavam o conteúdo das preciosas pipas vindas da terrinha. Vindos do Porto ou da Madeira eram oferecidos em festas de Natal e Páscoa enchendo com sua cor dourada e quente os cálices erguidos em brindes. Debret e Saint-Hilaire provaram deles. Antes dos franceses, porém, os fundadores da Austrália, de passagem pelo Rio, em 1787, estiveram a sua procura: “O vinho durante a estação em que permanecemos na cidade só era encontrado nos mercados de retalhos. […] Entre os produtos aqui disponíveis encontram-se: o açúcar, o café, o rum, o vinho do Porto…”.
Referindo-se aos costumes paulistas, Vilhena assim os descreveu:
“Tomam muito pouco vinho às refeições. A bebida usual é água. Em ocasiões públicas ou quando se oferece uma festa a muitos convidados, ornamenta-se a mesa suntuosamente […] O vinho circula copiosamente, repetindo-se os brindes durante o banquete que dura em geral de duas a três horas seguido de doces, o orgulho da mesa”.
As festas quebravam a inalterável rotina de trabalho: homens cuidavam de exercer sua profissão, administrar propriedades ou cultivar a terra. Mulheres praticavam as artes domésticas: a doçaria e a costura, dar ordens, no caso das senhoras, ou obedecer, no das escravas. E assim se seguiam os dias. Distrações? As proporcionadas pela Semana Santa e as festas dos padroeiros de irmandades quando então ocorriam procissões, bailes e leilões de prendas que sacudiam a modorra das vilas. Nada de óperas ou teatro, queixa de muitas autoridades que ali iam trabalhar.
A abstinência de carne na Sexta-Feira Santa era obrigatória. O cônsul Burton, no vilarejo de Bom Sucesso próximo a Diamantina, em Minas Gerais, viu senhores e escravos compartilhando peixes e ovos. Ao final da refeição, todos se puseram de pé, de mãos postas rezaram e persignaram-se. Em Recife, as “ceias de Semana Santa” tinham enorme importância. À beira dos grandes viveiros de Afogados e Jiquiá se retiravam barricas de camorins, carapebas, curimãs; perto dos mangues, se compravam guaiamus e caranguejos. E em Olinda, as famílias se abasteciam do pescado de alto mar, trazido pelos jangadeiros, como conta Félix Cavalcanti, em suas Memórias.
Câmara Cascudo lembra que um conjunto de regras tentava doutrinar os brasileiros com normas da etiqueta vindas do outro lado do Atlântico. A noção de “boa educação” começava a se sobrepor ao “estar à vontade”. Sentar-se à mesa não era sinônimo de comer. Para comer, era preciso “ter modos”. E quem recomendava era o manual de boas maneiras de J. I. Roquette: nada de colocar o guardanapo na casa do botão do colete, mas, no colo. Não partir o pão com a faca, mas, com a mão. Não deitar o café no pires, para tomá-lo aos golinhos! Nem enxugar o molho do prato com o pão. Proibido lamber os dedos. Nada de soprar a sopa para esfriar ou engolir a comida com precipitação. O almoço entre amigos excluía as senhoras, pois sua presença impediria anedotas ou confidências pitorescas. Iam para a mesa todas as comidas, inclusive as compoteiras de doces, os licores, as garrafas de vinho e as moringas d´água.
Por perto, a caixa de charutos de Cuba e os fósforos suecos da marca Jököping. A refeição tinha início com pratos quentes e sem ordem. Os assados eram servidos antes dos peixes. As entradas frias, de gosto alemão, só foram introduzidas depois da guerra do Paraguai, em 1870. A palavra delikatessem, antes nos cardápios de restaurantes referente aos embutidos, passou a frequentar as casas particulares. O almoço íntimo dispensava criados para o serviço contínuo que compareciam, contudo, quando chamados por campainha ou grito. O vinho do Porto e o café encerravam a refeição.
No século XIX, os excessos modernizantes conviviam com as tradições. Tradições que se enraizavam no calendário religioso ou agrícola. A assimilação indiscriminada de modas estrangeiras coexistia, sobretudo no interior e nas províncias afastadas da Corte com o que Padre Lopes Gama chamava de “usanças bárbaras de nossos avós”. O que seriam? Segundo o mesmo jornalista, “as folganças e desenfados populares”. Um dos que mais o irritava era o bumba-meu-boi. Uma dança ao som de violas, pandeiros e uma infernal berraria em torno de um boi, uma burrinha, um cavalo-marinho e certo “Pai Mateus”, em geral encarnado por um bêbado – criticava ele. Sua indignação aumentava quando o ator em questão encenava “em sacerdote com vestimentas de culto”. Certo, havia padres “tão peraltas, tão frascários e desregrados” que só serviam para padres de bumba-meu-boi- dizia. Mas, por que não arranjar um “magistrado venal, um militar covarde ou uma autoridade despótica” para fazer a figura de bobo? – perguntava Lopes Gama.
Frente aos avanços da ciência e às ideias laicas, a influência da Igreja católica declinava, sobretudo nos grandes centros, substituídos por formas de lazer “modernos”. Lopes Gama era nostálgico das procissões, das rogações e ladainhas piedosas que reunia os fiéis. “Até então, eram comuns, as festas “de bandeira” e novenas” de santos, no Nordeste. Os São João barulhentos, com fogos e busca-pés, quando se tiravam as “sortes”. Agora, – queixava-se – elas tinham se tornado ocasião para “palhaçadas e indecências”. As devotas não mais compareciam para orar, mas, para exibir “madamismo”, ou seja, para mostrar as melhores roupas além de sufocar os presentes com “cheiros”: cheiro de água de lavanda, de essências de rosas e Macassá! Das janelas, em que outrora se persignavam compungidas, agora, as moças “com olhos girovagos”, comentavam a passagem dos rapazes. Esses, por sua vez, não olhavam as imagens que seguiam nos andores, mas “as santinhas da terra… Os anjinhos […] Ferve o namoro por todas as ruas e de umas para outras varandas”.
Durante a Semana Santa, momento da procissão das “Cinzas” e de introspecção dos fiéis, em lugar de penitentes e flagelantes – pois “caíram em desuso tais bobices” – “um sujeito, vestido de morte, ” ia acenando para as varandas com a foice e fazendo galanterias as suas namoradas! E Lopes Gama escandalizava-se: “Já houve uma procissão destas, que ficou parada por muito tempo no meio da rua, porque a morte estava dentro de uma escada vomitando desordenadamente de uma grande borracheira que tomara! ”.
Cléber Augusto Gonçalves Dias que estudou as formas de lazer nessa época reitera que era assim que se desfrutava um dia dedicado ao lazer na natureza em princípios do século XIX: cantando, dançando e tocando música; jogando cartas; excursionando de canoa; descansando em esteiras sob árvores; conversando ou desafiando homens e mulheres para “feitos de rapidez, agilidade ou força”, tudo com “risos e alegrias sem limitações, dando largas à vivacidade de seus espíritos”. Passeios ao Corcovado eram recomendados a quem visitasse a Corte, passeio que inspirou ao pintor austríaco, Thomas Ender, uma gravura famosa: “Café da manhã no Corcovado”. E escaladas ao Pão de Açúcar também. Aliás, corre na tradição oral, a estória de certa Enrieta Carstiers, uma inglesa que teria escalado o Pão de Açúcar, em 1817, e desfraldado a bandeira da Inglaterra em seu topo.
As festas religiosas também eram importantes para reafirmar os valores familiares e sociais. No século XIX, novas funções para além da garantia da sobrevivência e a tessitura de alianças vão se consolidando na figura do pai. Manter a família unida passa a ser objetivo para muitos deles. Ameaçada pela desagregação e os revezes da fortuna, ela poderia se destruir. Não à toa, ao final do século XIX, em Pernambuco, Ambrósio Machado da Cunha Cavalcanti, senhor dos engenhos Gaipió e Arandu de Baixo, político dos últimos anos do Império, por ocasião da Semana Santa, reunia filhos, netos, noras e genros, “sem faltar um só e sem estar presente pessoa alguma estranha”. Todos tinham assinado um termo: tais reuniões se repetiriam enquanto houvesse um descendente. A intenção era fortificar os laços de harmonia e amizade no seio da família, “acabando-se qualquer desgosto ou malquerença que por ventura possa existir entre eles” – explica Evaldo Cabral de Mello.
- Texto de Mary del Priore (edição: Márcia Pinna Raspanti)
Natureza morta, de Albert Eckhout.