“Não são dois nem três, porém muitos os casos de crueldade de senhoras de engenho contra escravos inermes. Sinhá-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco. Baronesas já de idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos. Outras que espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas judiarias. O motivo, quase sempre, o ciúme do marido. O rancor sexual. A rivalidade de mulher com mulher”.
(Gilberto Freyre, “Casa Grande & Senzala”)
Quantas vezes ouvimos que as mulheres se odeiam, são muito competitivas entre si, ou que não confiam umas nas outras? Inúmeras. E a minha experiência aqui no blog tem me mostrado como algumas de nós podem ser duras com seu próprio gênero. Alguns comentários são pesados, cruéis. Estupros, abusos, violência doméstica – tudo isso seria causado pelas próprias vítimas, que, das mais diferentes maneiras, teriam provocado seus agressores. Até as meninas, recém-saídas da adolescência, são acusadas de serem libertinas e depravadas (note-se que geralmente quem julga nem conhece a vítima). Muitas mulheres adotam o discurso machista de que existem as mulheres direitas e as vagabundas (que são sempre as outras, claro).
Hoje mesmo li uma notícia de uma estudante que foi espancada por outras três garotas, por causa de alguma confusão com o namorado de uma delas. Gilberto Freyre no conta que, nos tempos coloniais, as sinhás costumavam maltratar suas escravas por ciúme dos maridos, com torturas e castigos. Subjugadas pelos próprios maridos, elas descontavam sua amargura e revolta nas cativas. Esposa e escrava, na verdade, eram propriedade do senhor de engenho. A mulher legítima lhe dava filhos e cuidava da casa; as escravas trabalhavam e o serviam também sexualmente. Tudo girava em torno das vontades do dono da casa. Como diz o velho e terrível ditado: “branca para casar, negra para trabalhar, mulata para f…”.
Sim, essa rivalidade entre mulheres persiste até hoje. O que muitas vezes nos esquecemos é que as mulheres também sempre foram ligadas por laços de solidariedade muito fortes. As mulheres se ajudavam e se uniam, muitas vezes, para livrar as amigas e parentes de companheiros indesejáveis. Durante as visitações do Santo Ofício, conta-nos Ronaldo Vainfas, em “Trópico dos Pecados”, muitas confirmavam denúncias aos inquisidores para salvar outras de situações difíceis.
As mulheres dominavam também as ervas medicinais e ajudavam na cura de doenças com sua sabedoria popular – o que era mal visto pela Igreja. Umas ajudavam as outras, e compartilhavam segredos, no campo amoroso e no combate às enfermidades e males femininos. As doenças da “madre” (útero) eram um mistério para os homens, e havia mulheres que preparavam beberagens e outros tratamentos para os problemas como esterilidade, corrimentos, dores, sangramentos, abortos espontâneos e gestações indesejadas. Na hora do parto, como relata Mary del Priore, em “Ao Sul do Corpo”, essas sábias mulheres ajudavam a aterrorizada parturiente com suas benzeduras e remédios (hoje, os acharíamos pouco ortodoxos).
O universo das práticas mágicas era dominado pelas mulheres – apesar de haver feiticeiros e magos do sexo masculino. Na época, acreditava-se que a mulher era mais propensa aos tratos com demônio. As europeias trouxeram para a Colônia a magia erótica portuguesa, que se misturaria com práticas indígenas e africanas. Filtros do amor, poções, beberagens, “cartas de tocar”, todos expedientes eram usados para conquistar a pessoa amada ou para vinganças contra algum mal feito. No campo amoroso, quantas sinhazinhas não recorreram à ajuda de suas mucamas para mandar secretamente bilhetes e recados aos seus amantes? E quantas escravas não foram acobertadas por suas sinhás?
Segundo Vainfas, as mulheres acabaram por construir uma sociabilidade e uma linguagem próprias, criando laços de solidariedade e amizade, em um mundo dominado pelos homens. “Brancas e mamelucas, moças de família ou filhas de artesãos, senhoras ou escravas, todas pareciam unir-se em diversas situações, partilhando experiências, trocando conselhos, descobrindo segredos, e quase sempre arquitetando maneiras para melhor se relacionarem com os homens”, conta. Vainfas destaca que a solidariedade tinha muitos limites, pois, o que unia as mulheres era o desejo de serem amadas e protegidas pelos homens. E a misoginia acabava se impondo…
Voltando a Gilberto Freyre acho que ele tem razão quando afirmou que o ciúme e o rancor sexual são os maiores causadores da rivalidade feminina. E tanto no passado quanto nos dias de hoje, o motivo é que muitas de nós ainda não conseguem se libertar do jugo masculino. Segundo Mary del Priore, as mulheres do século XXI são resultado de rupturas e permanências. “As rupturas empurram-nas para frente e as ajudam a expandir todas as possibilidades, a se fortalecer e a conquistar. As permanências, por outro lado, apontam fragilidades. Criadas em um mundo patriarcal e machista, não conseguem se enxergar fora do foco masculino. Vivem pelo olhar do homem, do outro”, acredita.
Oprimidas e reclusas, as mulheres do passado dependiam da proteção de um homem para serem aceitas na sociedade – apesar de muitas terem sobrevivido e criado seus filhos sozinhas. E hoje, não está na hora começarmos a tratar umas as outras com mais solidariedade?
– Texto de Márcia Pinna Raspanti.
“Hora da Música”, Oscar Pereira da Silva
(acervo Pinacoteca de SP).
Amei ler seu texto!
Muito feliz por encontrar esse blog. Uma riquíssima fonte de pesquisa para quem quer saber mais sobre as entrelinhas da História.
Obrigada Mary e Márcia!
Muito obrigada!
Há no texto uma certa abundância e riqueza de informações que nos falam de uma realidade um tanto quanto controversa da apresentada ao final do texto. Constatada a ação individual ou conjunta de mulheres em prol de uma demanda, uma necessidade ou de um status pessoal, pergunto: seria a tal “aprovação masculina” um fator preponderante para as mulheres agirem unidas ou mesmo umas contra as outras no cenário colonial? Digo isso pelo fato de a beleza feminina, a capacidade de liderança, os dotes e talentos diversos serem características das mulheres de extrema relevância para os homens. Não necessariamente o homem fosse para elas um objeto a ser alcançado, mas o seu valor pessoal dentro de um ambiente com suas relações de poder. Se o homem é patriarca, a mulher é mãe, protetora, senhora da casa-grande ou simplesmente uma escrava de múltiplas qualidades, aquela que agrada não somente o homem, mas a todos, homens e mulheres. Um status que pode ser desvinculado da figura do homem. Isso significa que podem haver outras nuances e regras comportamentais para a dinâmica entre essas mulheres no Brasil colonial que se tornam um objeto de uma análise mais minuciosa. Não nego aqui o patriarcalismo dessa realidade, como já salientei, apenas problematizo uma sociedade que, apesar de ter nos deixado sua herança, encontra-se afastada de nós no tempo e no espaço. Mesmo no período debatido, diminuir a mulher frente à sociedade masculina da época é um pouco simplista.
Obrigada pelas suas considerações, Wellington. Com certeza, a condição feminina na sociedade colonial tem vários outros aspectos a serem considerados. Mas, um artigo para blog não é um trabalho acadêmico: nossa intenção é exatamente levantar questões para o debate. Agora, acredito que é importante lembrarmos que a sociedade da época era patriarcal, e o papel da mulher era bastante definido – o que não impediu que muitas quebrassem as regras, às vezes, pela necessidade de sobrevivência, como foi dito no texto. Para uma análise mais minuciosa sugiro a leitura dos autores e obras citados. Quanto ao fato de estarmos afastados da mentalidade daqueles tempos, devemos lembrar – como diz Mary del Priore – que a História é feita de permanências e mudanças, e não há como negar a nossa herança cultural. Não acho que haja “simplismo” nessa constatação.
Ótimo texto, como sempre, muito reflexivo e rico!