Novos parlamentares tomando posse. Expectativas em relação aos rumos do país, que vive um período político conturbado. E o que domina as discussões do país? O decote da deputada estadual Ana Paula da Silva (PDT), a Paulinha, de Santa Catarina. A parlamentar foi alvo de ataques nas redes sociais após ter ido à posse na Assembleia Legislativa de Santa Catarina vestindo um macacão vermelho decotado. Sim, era um visual chamativo, que pode desagradar alguns, assim como pode agradar. Uma polêmica mais do campo da moda que da política. Entretanto, no Brasil do século XXI, os seios da moça se tornaram preocupação nacional. Especialistas afirmaram que o traje não feriu o decoro da casa, mas isso não impediu a avalanche de comentários, alguns bastante agressivos, incluindo sérias ameaças…
O Brasil das praias, dos biquínis, da minissaia, do Carnaval, ainda se choca com um decote um pouco ousado? Parece que sim. Tomamos conhecimento pela mídia de vários casos em que mães são constrangidas, repreendidas e até hostilizadas por amamentarem seus bebês em público. Em 2015, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, sancionou uma lei para garantir o direito ao aleitamento materno em qualquer estabelecimento da cidade. Quem proibir a mãe de amamentar seu filho em público pagaria multa.. Em caso de reincidência, o valor dobra. A lei detalha que não precisa haver “área segregada” para amamentação. À época, eu me questionava: precisamos de legislação para garantir que as mães possam alimentar seus filhos onde lhes for conveniente?
Nem sempre os seios foram sinônimo de erotismo. Na tradição cristã, nos conta Mary del Priore, o seio reservatório ajudou a combater o seio erótico. “Ele não podia corresponder a nenhuma tentação ou desejo. As Virgens do Leite, representadas com grandes decotes na escultura e na pintura no século XVIII, fecharam-se em golas abotoadas no XIX. De instrumento de sedução por trás de panos transparentes, os seios se tornaram instrumento de nutrição física e moral, de caridade e doação: aos filhos, ao marido, ao amante”.
No Brasil, as senhoras de classes sociais mais altas, logo após o parto, entregavam a criança para que uma ama de bom leite os amamentasse. Mulheres pobres e livres também ganhavam algum dinheiro amamentando os herdeiros das famílias abastadas. Médicos e confessores começaram a combater tal prática e o aleitamento era visto como um “dever”. A presença das amas de leite e o aleitamento artificial começavam a ser combatidos. O ápice deste debate ocorreu na metade do século XIX. As mães eram estimuladas a amamentar seus filhos, e a medicina as alertava para os perigos de fazer uso de das amas de leite. Além de proteger a saúde dos pequenos, tal missão tinha outro papel social: prender a mulher no universo doméstico.
Mary del Priore conta que, de modo gradativo, ao longo do século XX, a mulher se afastou da função de nutridora, devido à desvalorização da prática de amamentar pelos próprios profissionais de saúde. Na década de 1970, o tempo de aleitamento caiu a proporções menores que as conhecidas anteriormente, embora o aumento da desnutrição e da mortalidade infantil tenha despertado as autoridades sanitárias. A resposta veio na forma de políticas públicas para fortalecer o hábito da amamentação. Várias campanhas tentavam mostrar às mulheres como o aleitamento materno era importante. Obstetras e pediatras passaram a orientar as mamães a insistir na amamentação de seus bebês.
Quando pensamos em moda, observamos que as curvas femininas foram muito valorizadas até o início do século XX. Espartilhos apertavam a cintura, destacando o colo e os seios, e também os quadris. Vestidos de noite decotados eram sinônimo de elegância. As criações de Paul Poiret iriam valorizar outro tipo de silhueta: a mulher magra, com curvas mais discretas e seios pequenos. Essa inovação enfrentou muita resistência. Ao suavizar suas curvas, a mulher estaria negando sua feminilidade?
A moda deu voltas, seios grandes voltaram a ser valorizados – hoje assistimos à febre dos implantes de silicone. Ao mesmo tempo, essa parte do corpo feminino continua a causar grandes polêmicas e a escandalizar uma parte da sociedade. Afinal, qual a relevância do decote da deputada? “Nenhuma”, bradam muitas mulheres, cansadas de serem julgadas pela aparência. Outros são implacáveis com a moça, acusando-a de vulgaridade e de exagerar na sensualidade em um local não apropriado. Ora, mas a mulheres não enfrentam as mesmas acusações desde que saíram do universo doméstico e começaram a ocupar espaço no mercado de trabalho?
Nas primeiras décadas do século passado, as trabalhadoras eram vistas com desconfiança. Muitos diziam que elas estavam no “lugar errado”. Além dos salários baixos, do assédio sexual de chefes e das instalações insalubres das fábricas, as operárias tinham que enfrentar todo o tipo de preconceito. E o enfrentavam em casa, junto a companheiros que comparavam às fábricas a “lugares de perdição”, a “lupanares”, conta a historiadora. Os médicos fortaleciam o coro: lugar de mulher era em casa. Acreditava-se que o trabalho fora dela, destruiria a família, tornaria os laços familiares mais frouxos e debilitaria a raça.
“Ao homem público, todas as honras. À mulher pública, os opróbrios e xingamentos. Ainda assim, as mulheres recusaram, alteraram e recriaram muitas das práticas que os homens lhes havia imposto no mundo do trabalho”, destaca Del Priore. E esse tipo de pensamento continua muito presente em nossa sociedade, como o episódio do decote de Ana Paula demonstrou. Seios e política não combinam? Ou melhor, a feminilidade ainda incomoda quando ela é exposta em locais ainda dominados pelos homens?
- Texto de Márcia Pinna Raspanti.