Vaidade e pecado

 Era preciso enfeiar o corpo para castigá-lo. Os vícios e as “fervenças da carne”, ou seja, o desejo erótico tinha como alvo o que a Igreja considerava ser “barro, lodo e sangue imundo”. Onde tudo era feio porque pecado. Isso, porque a mulher – a velha amiga da serpente e do Diabo – era considerada, nesses tempos, como um veículo de perdição da saúde e da alma dos homens. Aquela “bem parecida”, sinônimo no século XVII para formosa, era a pior.

Logo, modificar a aparência ou melhorá-la com artifícios implicava em aumentar essa inclinação pecaminosa. Mais. Significava, também, alterar a obra do Criador que modelara seus filhos, à sua imagem e semelhança. Interferência, impensável, diga-se de passagem. Vários opúsculos circulavam tentando impedir as vaidades femininas. Os padres confessores, por exemplo, ameaçavam com penas infernais:

“Estar à janela cheia de bisuntos, tingir o sobrolho com certo ingrediente e fazer o mesmo à cara com tintas brancas e vermelhas, trazer boas meias e fingir um descuido para as mostrar, rir de manso para esconder a podridão ou a falta dos dentes e comer mal para vestir bem.”.

Apesar de tantas advertências, a mulher sempre quis seduzir, fazendo-se bela. Se a Igreja não lhe permitia tal investimento, a cultura lhe incentivará a forjar os meios para transformar-se. Os dispositivos de embelezamento, assim como o cortejo de sonhos e ilusões que os acompanhavam, eram de conhecimento geral. O investimento maior concentrava-se no rosto, lugar por excelência da beleza. As outras partes do corpo, com exceção dos pés, eram menos valorizadas. Consequência direta desta valorização, o embelezamento facial recorria a certa incipiente técnica cosmética. A preocupação maior era, em primeiro lugar, tratar a pele com remédios. Seguia-se a maquilagem com pós, “bisuntos” e “tintas vermelhas e brancas”, como já se viu.

Ver mais  Amor e ciúme

Não faltaram marcas do apetite masculino em relação à morena ou mulata na literatura dos séculos XVIII e XIX. O riso de pérolas e corais, os olhos de jabuticaba, as negras franjas e a cor do buriti são os signos sedutores desta fêmea que convida ao paladar, à deglutição, ao tato. São elas as verdadeiras presas do desejo masculino, mulheres-caça, que o homem persegue e devora sexualmente. Morenice e robustez eram, então, padrões de erotismo velado e de beleza.

Aos cuidados com a beleza do rosto, somaram-se outros, relativos à roupa. O caráter ambivalente dessa última, desvelando ao cobrir as partes mais cobiçadas da anatomia, constituía, ao mesmo tempo, um instrumento decisivo e um obstáculo à sedução. Montaigne protestava: “por que será que as mulheres cobrem com tantos impedimentos as partes onde habita nosso desejo? Para que servem tais bastiões com os quais elas armam seus quadris, se não a enganar nosso apetite, e a nos atrair ao mesmo tempo em que nos afastam?”. O pudor aumentava a cobiça que deveria atenuar. E essa obsessão de ver o que não se mostrava iria durar muito.

Mas desejar ardentemente uma mulher trazia riscos. Acreditava-se que o desequilíbrio ou a corrupção dos humores, graças à secreção da bile negra, explicasse uma desatinada erotização. Dela provinham os piores crimes e os mais violentos casos amorosos. Apesar do medo de castigos divinos, a razão não conseguia, muitas vezes, controlar o calor vindo do coração. Mas sem o controle de suas paixões físicas, homens e mulheres se perdiam. Pois foi o sentimento fora de controle, dando em erotismo desenfreado, que consolidou a ideia do desejo sexual como enfermidade.

Ver mais  Rota do Escravo: uma visão global

Mary del Priore

dicavalcanti15-Mulata

A beleza das morenas e mulatas (Di Cavalcanti).

Deixe uma resposta