A história sobre a criança feita no Brasil, assim como no resto do mundo, vem mostrando que existe uma enorme distância entre o mundo infantil descrito pelas organizações internacionais e autoridades, e aquele no qual a criança encontra-se quotidianamente imersa. O mundo do que a “criança deveria ser ou ter” é diferente daquele onde ela vive, ou, no mais das vezes, sobrevive. O primeiro é feito de expressões como “a criança precisa ou deve”, “seria oportuno que”, até o irônico “vamos torcer para”. No segundo, as crianças são enfaticamente orientadas para o trabalho, o ensino, o adestramento físico e moral, sobrando-lhes pouco tempo para a imagem que normalmente se lhe esta associada: aquela do riso e da brincadeira.
Pensar tais questões, assim como seus antecedentes históricos, vem sendo uma preocupação geral, para especialistas ou não. O estudo das representações ou das práticas infantis é considerado tão importante, que a historiografia internacional já acumulou consideráveis Informações sobre a criança e seu passado. Na Europa, por exemplo, há trinta anos a demografia histórica ajudava a detectar a expectativa de vida, o papel da criança nas estruturas familiares, os números do abandono infantil ou da contracepção. Em 1948, o pioneiro francês Philippe Ariès lançava os primeiros estudos sobre a questão. No clássico A criança e a família no Antigo Regime, datado de 1960, apresentava duas teses que revolucionariam o tema: a escolarização, iniciada, na Europa, no século XVI, levada a cabo por educadores e padres, católicos e protestantes, provocou uma metamorfose na formação moral e espiritual da criança, em oposição a educação medieval feita apenas pelo aprendizado de técnicas e saberes tradicionais, no mais das vezes, ensinado pelos adultos da comunidade. A Idade Moderna passa a preparar, nas escolas, o futuro adulto.
Paralelamente a essa mudança, a família sofria também uma profunda transformação com a emergência da vida privada e uma grande valorização do foro íntimo. A chegada destas duas novidades teria acelerado, no entender de Ariès, a supervalorização da criança. Apesar de todas as críticas que essas teses receberam, sobretudo quanto à percepção de um certo “evolucionismo” na condição histórica da criança – essa, na Idade Média não significaria muito para seus pais, passando a condição de “reizinho do lar” com a evolução da sociedade burguesa -, as teses de Ariès instigam o historiador brasileiro a procurar suas próprias respostas. E por quê?
Pois em primeiro lugar, entre nós, tanto a escolarização quanto a emergência da vida privada chegaram com grande atraso. Comparado aos países ocidentais, onde o capitalismo instalou-se no alvorecer da Idade Moderna, o Brasil, pobre, apoiado inicialmente no Antigo Sistema Colonial e, posteriormente, numa tardia industrialização, deixou sobrar pouco espaço para tais questões. Sem a presença de um sistema econômico que exigisse a adequação física e mental dos indivíduos a uma nova forma de trabalho, os instrumentos que permitiriam tal adaptação não foram implementados com a mesma eficácia.
Desde o inicio da colonização, as escolas jesuítas eram poucas e, sobretudo, para poucos. Se as crianças indígenas tiveram acesso a elas, o mesmo não podemos dizer das crianças negras, embora saibamos que alguns escravos aprendiam a ler e escrever com os padres. O ensino público só foi instalado, e ainda assim mesmo de forma precária, durante o governo do marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII.
Os cuidados com a evasão, com o ensino da religião cristã, da “obrigações civis” ou dos chamados “Estudos Maiores” não cobriam, contudo, as necessidades de uma parcela importante da população: aquela constituída por filhos de forros. Nos documentos, nem uma palavra sobre a educação de crianças negras ou de filhos de escravos, salvo a religiosa que segundo o jesuíta Antonil, era obrigatória.
No século XIX, a saída para os filhos dos pobres não seria a educação, mas a sua transformação em cidadãos úteis e produtivos na lavoura, enquanto os filhos de uma pequena elite, eram ensinados por professores particulares. Reclamada desde 1824, e criada em 1856, para atender as necessidades de uma população livre e vacinada, a escola pública proibia seus assentos às crianças escravas. Às pobres, provavelmente mulatas e negras, reservava espaço quando se tratavam daquelas que demonstravam “acentuada distinção e capacidade”. Examinando relatórios de mestres, lecionando em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, no final do século passado, Alessandra Martinez de Schuler demonstra, que segundo esses, uma parcela diminuta de alunos era constituída por libertos “pretos”, além de um “número pequeno de cor parda”. A desigualdade social e racial inscrevia-se, portanto, nas origens do ensino público que não era para todos. Mas, para alguns.
Para as crianças libertas com a lei do Ventre Livre (28/091871) sobrou a perspectiva do ensino profissionalizante. Institutos privados, na sua maior parte, de origem religiosos recolhiam crianças pobres e davam-lhes um mínimo de preparo prático para ofícios manuais. Schueler lembra ainda que, num dos seus artigos, a mesma lei, previa a educação dos “ingênuos” (crianças de até 5 anos) que fossem entregues ao governo pelos senhores. A instrução primária e o encaminhamento dos filhos livres das escravas para os ofícios manuais foram projetadas no texto legal. Instituições, como o Asilo de Meninos Desvalidos, no Rio de Janeiro, visavam não apenas atender os meninos que vagavam pelas ruas das cidades, mas também encontrar soluções para disciplinar os libertos. Muitos proprietários de escravos solicitaram, de fato, matrículas de “ingênuos” no Asilo, como forma de indenização pelos gastos com alimentação e cuidados com as crianças libertas pela lei.
No Asilo, atual Instituto João Alfredo, as crianças negras aprendiam leitura, escrita, aritmética, mas aprendiam sobretudo o trabalho manual capaz de reproduzir, por si só, a desigualdade social na qual estavam mergulhadas. Quando das grandes reformas urbanas que atingiram as capitais dos estados, no final do século XIX, vozes como as de Cândido Motta, Moncorvo Filho e Bush Varella, juristas e médicos, imprecavam contra a presença crescente de crianças nas ruas – as negras eram maioria – exigindo solução para estancar a circulação destes “desgraçados, sem teto, sem lar, sem educação, sem instrução e sem ordem”. Na República, recém proclamada e que ostentava na bandeira o lema “Ordem e Progresso”, a infância negra prometia desordem e atraso.
Na capital, Rio de Janeiro, pequenos mendigos, indigentes e vadios faziam da Praça XV, do Arco do Telles e das portas de igrejas, o seu ponto de apoio. Quarenta anos depois, o Estado Novo criava, em 1941, o Serviço de Atendimento ao Menor, (SAM), sistema que ajudou a criminalizar definitivamente o menor de rua. No primeiro quartel do século XX, a população de crianças carentes tinha que defrontar-se com um binômio imposto pela sociedade burguesa: lazer versus trabalho e honestidade versus crime. Normalmente foram associadas ao trabalho e, na ausência deste, ao crime.
A tarefa do historiador é, então, resgatar a história da criança negra não apenas enfrentando um passado e um presente cheio de tragédias anônimas como a venda de crianças escravas, a sobrevida nas instituições, as violências sexuais, a exploração de sua mão de obra, mas tentando também perceber, para além do lado escuro, a história da criança simplesmente criança, as formas de sua existência quotidiana, as mutações de suas ligações sociais e afetivas, a sua aprendizagem da vida através de uma historia que, no mais das vezes, não nos é contada diretamente por ela. – Mary del Priore
“O jantar no Brasil”, de Debret.
Mensagem * muito bom o texto para estudo
Esclarecedor e muito bom este texto!
Excelente, reflexivo, profundo e acessível. Como sempre!