Amor e ciúme

Documentos do período colonial revelam que os sentimentos estavam aprisionados em dois padrões de sexualidade então vigentes: o amor casto e respeitoso das esposas e o amor voluptuoso, fora do casamento, com “a outra”. Em testamentos de esposas, registram-se demonstrações de “estima, dedicação e gratidão” em relação ao cônjuge; carinho e amor eram aspectos do casamento dos mais pobres. Por isso, talvez, se desfizessem com facilidade as uniões entre pessoas de poucas posses. Os padrões de moralidade eram mais flexíveis e havia pouco a se dividir em uma vida simples.
Amores produzidos “no apetite e na desordem”, amores feitos de paixão, eram também eivados de ciúme. O convívio familiar apresentava traços que oscilavam entre dois extremos – a excessiva violência ou o excessivo amor se confundiam.

Na convivência entre homens e mulheres das comunidades mineiras, no século XVIII, por exemplo, ficavam evidentes condutas firmadas em um cotidiano do qual os padrões da Igreja pouco participavam. Nesse sentido, tais condutas revelariam uma ordem familiar em que ocorriam conflitos às vezes violentos, nos quais as mulheres não se mostravam passivas e em que havia atitudes contrárias à ordem escravista bem como comprovações extremadas de afeto. Trata-se de atos cujo exemplo serve para iniciar a complicada tarefa de estudar sentimentos e atitudes condenados aos olhos da Igreja. 
Consumido de ciúme da crioula Perpétua de Miranda, Manuel Borges “arrombou a parede do quintal dela e se foi por cima do telhado para entrar na casa dela por suspeitar que ela não lhe abrisse a porta por ter alguém entrado em casa e depois […] lhe deu muita pancada”, segundo relato de 1743, em Minas Gerais.

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Em Vila do Príncipe, o padre Manuel de Amorim Pereira tentava garantir seu relacionamento dando “pancadas noutro homem por respeito de uma negra”, sua amásia.  O reverendo Simão Peixoto, por sua vez, não aceitava o fim da relação com a parda forra de apelido “Rabu”. Quanto mais o reverendo insistia na reconciliação, mais a mulher resistia. As “descomposturas indecentes a seu estado”, mediante xingamentos e discussões em público, eram frequentes, até chegar à luta física. Após muitas brigas entre o casal, “de que resultou quebrar-lhe a cabeça”, a mulher, “vendo-se ferida correu atrás dele com um espeto na mão”. Esses são exemplos de atitudes públicas nas quais transpareciam não só a existência de um comportamento amoroso, mas os conflitos, a paixão e o afeto que lhe estavam subjacentes. 
A relação entre zelo e violência era a chave do discurso que aparece em vários documentos. Hoje, “zelo” tem a acepção de cuidado, desvelo, pontualidade e, com menos frequência, pode até significar afeição íntima ou ciúme. Em sua acepção original, contudo, zeluz significa ciúme e tem a ver com cultuar o ardor fora do casamento e dedicá-lo à mulher, e não a Deus. Nesse caso, a acusação de zelo parece sintetizar a solução para a condenação da paixão e do afeto extraconjugais.
Falas proferidas perante tribunais eclesiásticos revelam sentimentos de dedicação entre amantes. Por exemplo: na São Paulo de 1796, Ana Francisca de Paula se queixa ao juiz eclesiástico de que o marido “dizia claramente que queria ficar com sua concubina Escolástica, mulher parda, por ser esta a que mais lhe agradava e servia”.
Embora classificados como ilegítimos pela Igreja, os relacionamentos consensuais confirmavam, em muitas partes da colônia, a existência da estabilidade tão desejada nos matrimônios oficiais – mas também de sentimentos que ficavam distantes do espírito religioso. Vivendo publicamente com as parceiras, indiferentes à sua condição, comparecendo à casa de Deus com elas para cultivarem o espírito religioso ou tratando-as com zelo exagerado, o convívio familiar de grupos populares mesclava valores tradicionais e transgressão. – Mary del Priore

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O amor e os relacionamentos entre as classes populares. (desenhos de Rugendas)

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