Hoje, os historiadores sabem que nem sempre as relações de poder foram negativas para as mulheres. As cativas se destacaram na aquisição de alforrias e, as libertas, na aquisição de bens. Em testamento, inúmeros homens livres legitimaram ou instituíram como seus herdeiros os filhos tidos com escravas ou libertas. Mais interessante é o papel das próprias mulheres livres ou libertas na mobilidade de outras mulheres. Em todas as províncias do Império se viram casos de homens que dotaram seus filhos e companheiras com toda a sorte de bens. De dinheiro às terras. De escravos às casas e negócios. Essas por sua vez libertavam e ajudavam filhas, mães, comadres, dependentes e suas próprias escravas, beneficiando-as, em seus testamentos, com bens que lhes garantissem um mínimo de conforto e tranquilidade. Não faltaram pedidos de divórcio, motivados pela relação estável de senhores com suas escravas ou mulheres “de cor”.
Além disso, houve as que enriqueceram por conta própria graças às suas competências e inteligência. Caso das riquíssimas negras Monica da Costa Ferreira e Teresa de Jesus e Souza, oriundas da Costa da Mina, ambas à frente do aluguel de casas ou de redes de negócios e moradoras de casas-grandes com extensos quintais, em bairros abastados de Recife. Ou Rosa do Ó Freire, que comprou sua liberdade vendendo doces, e depois, se tornou senhora de nove escravos de ganho, de quem recebia uma diária. O francês Biard viu uma dessas forras ricas numa cadeirinha forrada de chita azul, sem querer deixar passar outra cadeirinha: “- A mulata primeiro!” E tome de gritar com seus escravos!
A ascensão das mulatas também pode ser observada nos Compromissos de Irmandades onde ocupavam cargos importantes nos conselhos dirigentes. Em Goiás, por exemplo, não só construíram igrejas como a de Nossa Senhora da Boa Morte ou Nossa Senhora da Conceição quanto pelas doações de ouro e cera para velas, doações aos pobres ou para festas dos santos protetores. A Irmandade da Natividade, na mesma cidade, são inúmeras as “morenas” que aparecem em cargos altos como “rainhas” ou “juízas” todas com suficientes recursos financeiros para exercer sua função. A africana Joana Maria de Assunção fez uma tão grande doação à irmandade que ficou homenageada como “rainha perpétua”.
Houve até escravas que depois de forras, tendo herdado bens deixados por seus senhores, os multiplicou e os devolveu. Foi o caso da escrava Senhorinha Constância da Rocha, beneficiada no testamento de Dona Antônia da Rocha cujo nome adotou, herdeira de uma morada de casas e uma escrava. Em Mariana, Minas Gerais, ela frequentava as missas “vestida de capote, vestido e lenço de seda”. Senhorinha multiplicou o número de cativos por procriação, e ao morrer, 27 anos depois, sem filhos, deixou seus bens, inclusive mais escravos, para o futuro Barão de Pontal. Forros proprietários de escravos uma exceção em Minas? Não. Estudos comprovam que em Sabará e Serro Frio a prática era comum desde o século XVIII.
Não faltaram as que lutaram por seus direitos nos tribunais. Senhores que “mudavam de ideia” depois de alforriar suas cativas, ou as penhoravam quando já alforriadas, levavam muitas às barras dos tribunais para obter legitimidade para sua condição: “justiça para viver como se de ventre livre nascera”, diz claramente o processo de certa Gertrudes Maria, quitandeira, na cidade de Paraíba. Prova de que as mulheres conquistavam, também, novos espaços de ação na sociedade escravista.
Não foi à toa que George Gardner concluiu que poucos brasileiros eram “brancos”. A mestiçagem era um fato além da mobilidade ter dado a mulatos, pardos e mestiços uma grande visibilidade social.
- Texto de Mary del Priore. Adaptado de “Histórias da Gente Brasileira: Império (vol.2)”, que será lançado no próximo mês.
*expressão da época.
“Mulata indo passar as festas de Natal no campo”, Debret.
Não consegui achar a data da publicação, mas alguns termos são pejorativos e não devem ser usados hoje em dia, ex: mulata.
SEMPRE QUE POSSÍVEL SIGO OS COMENTÁRIOS DE MARY DEL PRIORE, POR SEREM MUITO INTERESSANTES E INFORMATIVOS.
PARABÉNS,
ELIANE
Parabéns pelo artigo, que demonstra a complexidade da nossa sociedade já nos tempos coloniais. Senti falta de menção à mais famosa de todas as escravas alforriadas, Francisca da Silva de Oliveira (ca. 1732-1796), a Chica da Silva, que alcançou posição de destaque na segunda metade do século XVIII em Diamantina.
Bom dia, Antônio. Já publicamos artigos sobre Chica da Silva. Dê uma olhada:
https://historiahoje.com/democracia-racial-chica-da-silva/
Boa noite.Gostaria de saber o motivo dessas historias reais não serem expostas no ensino?A impressão que eu tenho e acredito que outras pessoas pensam assim é que nossas antecessoras foram simplesmente coadjuvantes.É muito interessante e gostoso que seus estudos mostra que foram pessoas que de alguma forma alteraram seus destinos.