Violência contra a mulher: a desconstrução de costumes e tradições

             O “Raio X do Feminicídio”, um estudo feito pelo Núcleo de Gênero do Ministério Público paulista, mostra que 45% dos casos no estado de São Paulo ocorrem por separação ou pedido de separação, 30% por ciúmes ou posse e 17% em meio a uma discussão. O estudo indica ainda que em 66% dos casos, as vítimas foram atacadas dentro de casa, 6% em via pública, 5% no trabalho e 5% em estabelecimentos públicos.

             Toda vez que escrevemos sobre o assunto neste blog, muitos leitores questionam “por que há uma lei específica para o assassinato de mulheres? Por que elas merecem tal privilégio?” Desde março de 2015, a legislação brasileira prevê penalidades mais graves para homicídios que se encaixam no feminicídio, ou seja, que envolvam “violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. O feminicídio é uma modalidade de homicídio qualificado, sendo considerado um crime hediondo. Segundo o Código Penal Brasileiro, os crimes classificados como de homicídio qualificado são punidos com reclusão que pode variar de doze a trinta anos.

            O argumento dos que são contrários à lei é de que ela seria desnecessária, afinal já existem outras qualificações previstas na legislação como agravantes do crime de homicídio. Para responder a esse questionamento, vamos recorrer à História. A desqualificação da mulher, a visão de que ela é apenas uma propriedade do marido, amante ou mesmo do pai tem sido uma das maiores causas da violência contra o gênero feminino, como demonstram os dados da pesquisa citada acima. Nos tempos do Brasil Colônia, as mulheres sofriam com agressões físicas e também psicológicas, com o abandono, a humilhação e a privação de bens ou dos filhos. Elas tentavam se proteger pedindo a ajuda das autoridades existentes, como o governador ou o bispo.  Na legislação lusa e na sociedade colonial, a punição do assassinato do cônjuge por adultério era desigual, sendo que o assassinato cometido por homens em “defesa da honra” perante o adultério feminino encontrava apoio legal.

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             O Código Civil de 1916 sacramentava a inferioridade da mulher em relação ao marido, sendo que ao homem cabia a representação legal da família, enquanto que à esposa era negado o exercício de determinados direitos civis, com limitações semelhantes às impostas aos menores ou aos índios. “Pesquisas registram que o marido, tal como um pai, se sentia no dever de punir com violência sua esposa quando desobedecido. Embora nenhum código permitisse ou mesmo relevasse tais agressões, estas se davam sob a proteção das regras do costume” (2), como contam Mariana Maluf e Maria Lúcia Mott, em “Os recônditos do mundo feminino”.

               A aceitação de  crimes em “defesa da honra” sempre foi presente em nossa história: atravessou os tempos, coloniais, imperiais, a República Velha. Mesmo após a revolução sexual dos anos 60, a tese permaneceu firme. Um dos crimes mais emblemáticos dos anos 70, foi cometido na praia dos Ossos, em Búzios, balneário no Rio de Janeiro. Em 30 de dezembro de 1976, Doca Street, personagem da alta sociedade paulistana, matou com três tiros no rosto e um na nuca sua amante, a mineira Ângela Dinis. Tudo começou com uma crise de ciúme. (3) Invariavelmente, nesses casos, a memória da vítima é atacada para provar que seu comportamento teria levado o companheiro a matá-la. Em crimes de estupro, a defesa do agressor é sempre destruir a imagem da mulher para provar que ela “estava pedindo por isso”. Obviamente que uma lei não é suficiente para mudar essa triste tradição, porém é uma forma de explicitar que tais comportamentos não são mais aceitos.

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           Feminicídio ou femicídio? Ambas as denominações exigem medidas institucionais. Mas, só para lembrar, alguns se baseiam na terminologia utilizada por Jill Radford e Diana Russell, autoras do livro “Femicídio: As Políticas do Assassinato de Mulher”, de 1992, e outros, na de Marcela Lagarde, teórica, antropóloga e deputada mexicana, que afirma ter o assassinato de mulheres uma significação política, equiparando-se a um genocídio. Daí o feminicídio. Feministas de todas as tendências continuam discutindo qual a melhor maneira de tratar o assunto.

          Para além dos conceitos, porém, os fatos: se considerarmos o último relatório da Organização Mundial da Saúde, o Brasil ocuparia a 7ª posição entre as nações mais violentas para as mulheres de um total de 83 países. Milhares de pesquisas na área da saúde, da psicologia, da educação, da economia e da sociologia vem tentando dar respostas para um fenômeno mundial. Não à toa, o conceito nasceu no país mais rico do planeta. Os números da violência contra a mulher são altíssimos mesmo em nações desenvolvidas e com IDH alto, como a França, por exemplo.

         Poder-se-ia imaginar que o emponderamento crescente, a maior visibilidade da mulher na vida pública, o fim da privacidade e tantas mudanças de valores e conceitos em relação à sexualidade venham ensejando reações da única espécie animal que acredita ter o direito de bater e a matar as mulheres quando essas não estão à sua disposição: o homem. Entretanto, é bom não esquecer que homens e mulheres são produtos de uma cultura. Na nossa, se há homens que querem suas mulheres coisificadas, manequins programados para servir sexualmente, passar, lavar e cozinhar, existem também mulheres para quem é motivo de orgulho estar disponível e viver para agradá-los.

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         Seres de cultura que somos, podemos, sim, mudar as representações arcaicas entre sexos, que estão aí, até hoje. Leis seriam suficientes? Não, se nosso Legislativo for ocupado por pessoas de ambos os sexos com mentalidade pré-histórica. Mas, mesmo sabendo que até nas universidades mais conceituadas do país os estupros são silenciados,  somente com muita educação conseguiremos fazer mais do que criar conceitos. Conseguiremos extinguir a violência que explica suas causas. Cabe a cada um, homem ou mulher, fazer a sua parte, construindo uma cultura de tolerância e igualdade.

  • Texto de Mary del Priore e Márcia Pinna Raspanti
"Susana e os anciãos", de Artemisia Gentileschi (1610)

“Susana e os anciãos”, de Artemisia Gentileschi (1610)

 

Referências bibliográficas:

(1) PRIORE, Mary del. “Conversas e Histórias de Mulher”, Editora Planeta, 2013.

(2) _. “Histórias Íntimas”. Editora Planeta, 2011.

(3) MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando; SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil, 3: República: da belle époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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