Sexualidade feminina e depressão

Edificado como altar da procriação, o útero em funcionamento apontava a mulher normalizada, identificada com os esforços da Igreja em redimir os males cometidos por Eva. A mulher incapaz de conceber era tida por doente, “maninha”, e se tornava atacada de paixões ou de melancolia.

A melancolia, por sua vez, era diagnosticada por tratadistas de época como uma alucinação sem febre, acompanhada de medo e tristeza. Galeno teria associado tais sentimentos à cor negra, resultante dos vapores que exalavam do sangue menstrual, causador de horríveis e espantosas alucinações. “Todas essas paixões têm tão grande poder no corpo humano” ameaçava, em 1731, Francisco Henriques, “que não só causam gravíssimos males, mas também mortes”. O médico setecentista Bernardo Pereira explicava, por sua vez, que:

“Por isto chamam a melancolia banho do Demônio, e por muitas razões. Pela rebeldia, renitência e erradicação de tal humor que por frio e seco é inobediente aos remédios e constitui doenças crônicas e diuturnas. Encobre-se aqui a astúcia e maldade do Demônio e seus sequazes, e se ocultam as qualidades maléficas com os sinais e sintomas que se equivocam com os originados de causa natural, e nestes termos o doente, o médico e assistentes ficam duvidosos”.

Enfermidade feminina por excelência, a melancolia diabolizava o corpo da mulher infecunda associando-a a infelicidade e morte. Seu útero, território do conflito entre Deus e o Diabo, recusava através de sintomas como medo e convulsões satânicas a maternidade, negando-se, portanto, a cumprir a tarefa teológica reservada à mulher. Tidos por essencialmente uterinos, os males femininos derivavam da zona genital, numa tradição já registrada nos livros do corpo hipocrático mantendo-se presentes até em textos redigidos no século XIX: “Ela sofre do órgão do amor e da maternidade e todas as suas doenças são direta ou indiretamente ressonâncias da matriz”, afirmaria o historiador e escritor francês Michelet.

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O critério do útero regulador da saúde mental da mulher se irradiava em toda a Europa moderna – e, portanto, na metrópole lusa – difundindo uma mentalidade na qual a mulher era física e mentalmente inferior ao homem e escrava de sua fisiologia. Essa natureza própria e ordenada pela genitália reverberava os problemas da alma feminina, fazendo da mulher um monstro ou uma criança incontrolável. Vítima da melancolia, seu corpo se abria para males maiores como a histeria, o furor da madre, a ninfomania:

“Porque procede do útero e este como animal errabundo, segundo lhe chama Galeno, tem simpatia e comunicação com todas as partes do corpo, não há alguma que seja livre dos seus insultos, especialmente se o sangue mensal não depura todos os meses ou se infecciona com humores cachochéricos ou putredinosos de que abunda o útero; ou se suprime a evacuação ou se a retarda, donde nascem contínuos acidentes e muito mais notáveis”, diagnosticava o doutor setecentista Bernardo Pereira .

Nesses casos, as enfermas revelavam sintomas tão inusitados que faziam parecer “a muitos professores doutos que estão oprimidas de algum espírito, porque nelas se experimentam vozes e sibilos horrendos e infernais”. Na Idade Moderna ocorre uma violenta transição na explicação galênica, que associava sintomas melancólicos à abstinência sexual, passando-se, então, a crer numa nova interpretação teológica, responsável por uma mudança radical nas mentalidades.

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A espiritualidade de santo Agostinho que via na sexualidade a forma por excelência do pecado impedia que se pensasse qualquer ligação de causa e efeito entre a castidade e tal signo patológico. O caráter espetacular dos sinais da melancolia, só podia resultar, segundo a Igreja, da interferência de forças ocultas. Padres e médicos jogavam água no moinho de uma doutrina teológica que atingia a mulher, cobrindo-a de suspeição e dispondo-se a ver nela o objeto de manobras do Demônio. Em 1707, o médico João Curvo Semedo afirmava que seria enfadonho listar todas as doenças que as mulheres padeceriam por causa da madre, sendo ela “a autora de infinitas calamidades”. Semedo a denominava então “madre assanhada ou furiosa”.

Outro doutor reconhecia doenças femininas por uma dor “proveniente de um desejo insaciável de Vênus que elas indicam levando as mãos às ditas partes, tendo perdido toda a vergonha”. Os olhos ficavam fundos e modificavam-se as cores do rosto; sobrevinha uma vontade de “falar e ouvir coisas venéreas”, e grandes suspiros que resultavam de “grandes imaginações”. A aparência que tomavam as infectadas pela melancolia colaborava também para sua identificação e sua posterior exclusão:

Perdem a princípio a vontade de comer e dormir, nada gastam de suas ocupações ordinárias; fiar, coser, bordar tudo é para elas um tormento insofrível; buscam o desafogo na janela para verem e serem vistas dos passageiros; mas nesta estação a melancolia se pinta com sombras sua a sua face e depois degenera num furor amoroso de que elas não se podem deter e as faz entregar-se a toda a sorte de indecências, tanto em seus atos, como em suas palavras”.

A natureza feminina bastava para explicar tantos desacertos: tanto o apetite sexual quanto a imperfeição das substâncias de seu corpo, eram consideradas degenerativas.

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– Mary del Priore.

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“Ofélia”, de John Everett Millais (1851).

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