Bruxaria, religião e mortalidade infantil

No passado, havia uma grande preocupação em torno das crianças pequenas para resguardá-las do assédio de bruxas. O medo da perda, a crença em feitiços realizados com os excretos da criança, o perigo de doenças reais ou imaginárias alimentava uma série de conselhos seguidos à risca pelas mães. O médico Bernardo Pereira, em meados do século XVIII, prevenia sobre o poder que tinham as bruxas de atrofiar os recém-nascidos por malefícios, pois, segundo ele, “elas chupam o sangue dos mínimos”. Assim, não se podia deixá-los sós, à noite. Protegê-los graças a defumadouros na casa e na cama e do uso de arruda entre os lençóis era obrigatório. Os aposentos deviam ser regados com cozimento de verbena e “os mínimos” (bebês), borrifados com o mesmo. O médico, ainda, recomendava: “Armem-se com os antídotos da Igreja…relíquias, orações, etc. que essas são mais certas e seguras que outras para afugentar os bruxos”.

Não satisfeito, o médico insistia para que se pendurasse à cama da criança, “cabeça ou língua de cobras e sangue e fel da mesma posto pelas paredes da casa em que dormirem os mínimos”. Sendo alvo fácil, a fragilidade do corpo infantil incentivava o sentido de proteção das mães. Estas mantinham-se alertas e reconheciam o enfeitiçamento de seus pequeninos por vários sintomas claramente detectáveis: “medos e tremores a miúdo, choros repetidos, tristeza de aspecto, mudança de cor instável, terrível repugnância em mamar, vergões ou nódoas em algumas partes”. Na dúvida, existiam algumas maneiras de reconhecer se havia “quebranto”. Bastava tomar um vaso cheio de água e posto debaixo dos cueiros ou faixas dos mínimos ou dos berços, e metendo-lhe dentro um ovo, e se andar nadando é certo haver quebranto, e se for ao fundo, está livre”. Para combater quebrantos e bruxedos, a criança era benzida, em jejum, durante três dias, com raminhos de arruda, guiné ou jurumeira.

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Mas não eram exatamente as bruxas as responsáveis pela mortalidade infantil nos primeiros tempos da colonização. Os lusos, recém-chegados traziam consigo rígidas noções de resguardo e de agasalho. Tinham horror aos banhos e ao ar livre. O médico holandês Guilherme Piso, morador de Recife na primeira metade do século XVII, contrapondo tais hábitos aos dos caboclos recifense locais, concluiu pela superioridade do método indígena no qual a criança era livre de panos grossos e agasalhos pesados como os que enfaixavam a criança europeia a fim de dar firmeza aos seus membros. Mais tarde, em 1834, o Padre Gama, explicava que as mulheres portuguesas teriam a princípio criado muito poucos filhos pelo elevado índice de mortalidade infantil. Mas que “as filhas destas mulheres, acomodando-se ao clima e rejeitando o peso dos vestidos e ao uso de abafar a cabeça dos filhinhos, banhando-os em água morna, não se queixaram mais de que o clima fosse o destruidor  das vidas dos recém nascidos”.

De toda a forma, doenças infantis mais comuns – mal dos sete dias, tinha, sarna, impingem, sarampo, bexiga, lombrigas – eram combatidas com remédios de pouquíssima eficácia. A erisipela, por exemplo, era tratada com santos óleos e uma oração em verso:

            “Pedro e Paulo foi a Roma

              e Jesus Cristo encontrou

              Este lhe perguntou:

              – Então, que há por lá?

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              – Senhor, erisipela má.

– Benze-a com azeite

e logo te sarará.”

Gilberto Freyre lembra que a mortalidade infantil se abrandou da segunda metade do século XVI em diante; mas continuou impressionante. No século XVIII preocupou-se com ela o Dr. Bernardino Antônio Gomes; no século XIX é um dos problemas que mais inquietam os higienistas do segundo império – Sigaud, Paula Cândido, Imbert, o barão de Lavradio; até que em 1887 José Maria Teixeira consagrou-lhe um estudo notável: “Causas da Mortalidade das Crianças do Rio de Janeiro”. Na sessão da Academia de Medicina de 18/06/1846 levantaram-se várias hipóteses. As mesmas, aliás, que perseguiam os manuais de medicina do século XVIII: o abuso de comidas fortes, o vestuário impróprio, o aleitamento mercenário com amas de leite atingidas por sífilis, boubas e escrófulas, a falta de tratamento médico quando das moléstias, os vermes, a “umidade das casas”, o mau tratamento do cordão umbilical, entre outras que estão aí até hoje. Mas haviam aqueles que milagrosamente se salvavam. Os relatos de estórias envolvendo a saúde dos pequenos e as crenças na proteção divina ou na de intercessores celestiais ilumina alguns aspectos da religiosidade colonial envolvendo a infância.

Colocados frente à imagens da Virgem, levados em peregrinação a oratórios, presentes à procissões ou recebendo bênçãos em dias de festa religiosa, os pequeninos recuperavam a saúde e reproduziam um universo mental e cultural de pietismo religioso. Ex-votos pintados sobre madeira, em que se reproduzem cenas da vida quotidiana de crianças atingidas por acidentes, doenças ou qualquer forma de perigo, – na época era comum a mordedura de cobra ou de cão raivoso – são testemunhos da preocupação que as mães tinham com seus “meúdos”. Haviam os que morriam e tornados “anjinhos”, honravam a Deus, no céu e haviam aqueles que partiam direto para “o limbo”: segundo um catequista, “uma caverna escura por cima do Purgatório em que estão os mínimos que faleceram sem batismo”. Pagãos eram enterrados nas biqueiras das casas ou nas encruzilhadas, de onde – acreditava-se – rogavam batismo. Os cortejos fúnebres de anjinhos, iluminados por velas e congregando filas de pessoas atraíam, sobretudo, a atenção dos viajantes. Sensibilizado, Debret, viajante francês de passagem pelo Brasil em 1816, fez questão de registrar suas impressões:

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“Grupos de círios acesos, colocados em profusão fazem brilhar as flores e vidrilhos entre os quais não se distingue o pequeno embrião fantasiado de anjo e deitado num pequeno leito de tafetá branco, rosa ou azul-céu, guarnecido com debruns de prata. O rosto descoberto é pintado das mais vivas cores e o penteado consiste numa peruca loura, bem empoada, coroada por uma enorme auréola feita de plaque de ouro e prata”.

Escravinhos e indigentes utilizavam, apenas, um tabuleiro recoberto por uma toalha de renda enquanto as mães pobres preferiam alugar flores artificiais e coroas para cumprir o dever de enterrar condignamente seus rebentos. – Mary del Priore.

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“Bruxa e Mandrágora”, de Henri Fuseli (1812).  

2 Comentários

  1. Luana

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