Ser mãe ainda é uma obrigação para as mulheres?

Nos anos 1960, a imprensa feminina passou a difundir a ideia de que a mulher tinha o direito de ser “letrada ou cientista, de saber cozinhar e lavar, mas jamais de ignorar as funções de mãe”. Não era só uma questão de alegria, mas de dever. As páginas da recém-lançada Cláudia, revista que veio ao encontro das mulheres urbanas de classe média, reforçavam a ideia de que a maternidade era motivo de orgulho e responsabilidade. Até no caso de mães solteiras. Pipocavam, então, artigos sobre o cuidado e a educação dos filhos, que exigiam das genitoras imensos sacrifícios, mas com uma diferença: se os filhos exigiam cuidados, o cuidado da mulher com ela mesma também passava a ser importante. O nascimento de um filho não era mais solução para um casamento em crise. Embora, por ele, a mãe devesse evitar o desquite, as brigas e as desavenças: “Com os filhos não são permitidas experiências. Os filhos não são um meio, são uma finalidade”, advertia a coluna “Cláudia responde”.

Cláudia já admitia a possibilidade de a mulher se realizar em outras funções que não dona de casa e mãe. A principal cronista, a psicanalista Carmem da Silva, pioneira da modernização da imprensa e responsável pela coluna “A arte de ser mulher”, chegou a afirmar que mesmo a mulher integrada ao mundo por um trabalho que signifique “uma causa maior” podia ser boa mãe e educadora – mais do que alguém que apenas disciplinasse a criança.

Assim, em maio de 1969, sua coluna publicou o seguinte artigo: “Qual é a imagem que você faz de si mesma?”. Nele, Carmen afirmava que a expressão “imagem” vinha sendo utilizada pelos modernos veículos de comunicação e nas técnicas publicitárias da época como mecanismo de manipulação da opinião. Interessada na autoimagem da mulher brasileira de classe média, suas observações levaram à conclusão de que a mulher brasileira tinha de si mesma uma visão binária: de um lado, a desmedida exaltação da feminilidade, com a consequente negação de todos os aspectos desfavoráveis da realidade em que ela vivesse; de outro, uma noção amarga e depressiva da condição feminina, tomada como um fardo, quase uma maldição biológico-social.

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Ou seja, ser mulher ora era céu, ora inferno. O texto sublinhava a visão idealizada que as mulheres tinham de si mesmas, espécie de imagem pré-fabricada. No caso de mães, por exemplo: “as mulheres separam o exercício real da maternidade (eu mesma tal como sou, em relação com estas crianças, meus filhos, tais como eles são, a vivência do nosso dia a dia) da ideia da maternidade. O que sublimam é a ideia, é o ser mãe considerado abstrato”.

O artigo de Carmem colocou uma primeira mancha no papel sagrado e límpido do “ser mãe”. Ela ousara criticar o enaltecimento da maternidade, a ideia de que ela era algo precioso e colocado acima de tudo. Afinal, na maior parte das vezes, o cotidiano das mães era feito de problemas a solucionar, tensões e angústias. Sobretudo entre mulheres pobres e trabalhadoras, a maternidade não era um prazer ou um luxo, e sim mais uma tarefa duríssima. A distância entre o ideal da mãe consagrada em tempo integral aos filhos e a vida cotidiana de mães de origem modesta era abissal. Sofrer no paraíso? Não. No chão duro da realidade mesmo.

Nas últimas décadas, o desenvolvimento tecnológico e a globalização econômica contribuíram para a circulação de novos padrões de comportamento e consumo. Entre os produtos consumidos encontram-se as tecnologias contraceptivas e conceptivas, que oferecem às mulheres a possibilidade de escolher como desejam efetuar a maternidade.

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Tais opções são marcadas pelas diferenças sociais: ricas, da classe média e pobres, mais ou menos educadas. As mudanças não atingem todas da mesma maneira. A inserção da mulher no mercado de trabalho, a presença fora de casa e os impactos que tais transformações trouxeram à família e à maternidade são objeto constante de interrogação para profissionais da saúde e para a sociedade. A população brasileira concentrada nas grandes cidades reduziu a taxa de natalidade. Da prole numerosa do passado, em que muitos filhos ajudavam no trabalho, sobretudo agrícola, passamos aos filhos planejados. E poucos. Com maior acesso à educação e à profissionalização, as mulheres tiveram de se dividir entre os papéis da casa e os da rua. Ora mãe, ora profissional. Nos dois, deveria se sair bem, desdobrando-se como podia entre duplas, quando não triplas jornadas de trabalho. Eis que começaram a escolher…

Os avanços da contracepção, e principalmente os da concepção, apresentam, hoje, uma nova opção: ser ou não ser mãe? Problema novo? Não. No período colonial, abortava-se usando instrumentos perfurantes como agulhas, canivetes, ou ingerindo drogas abortivas. Ao tentar se livrar do fruto indesejado, as mulheres acabavam por se matar. No final do século XIX, houve uma explosão de abortos. Pessários, seringas e diafragmas eram vendidos em farmácias ou de porta em porta. Considerado antipatriótico e “pornográfico”, o aborto era visto como “flagelo social”. Enquanto isso, mulheres eram empregadas na indústria ou nos serviços urbanos – uma gravidez não planejada contrariava a luta pela sobrevivência ou a mobilidade econômica. A recusa da maternidade era então muito criticada. Recusar uma “função natural” era negar a feminilidade e todos os papéis da mulher. Gravíssimo!

Embora abertamente discutido pela mídia, o aborto ainda é cometido de maneira clandestina no Brasil. Pesquisas recentes apontam que 6% das brasileiras já o praticaram. O fato é que a pílula anticoncepcional revolucionou a relação com a maternidade. Independentemente de suas consequências – impacto sobre a demografia, danos à saúde da mulher, convite à esterilização feminina ou à liberdade sexual, etc. –, ela mudou os dados da equação sobre o tema.

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No início do século XXI, as mulheres já podiam retardar a maternidade e escolher o melhor momento para serem mães. Da recusa, passou-se à escolha. A maternidade ainda se explica por razões clássicas: o desejo de continuidade; a busca de um sentido para a vida; a necessidade de valorização e reconhecimento social; o amor pelas crianças; o modelo de família tradicional. Tudo isso depende das condições econômicas e culturais de cada uma. Maiores reflexões sobre a questão e famílias menores adiam o projeto do primeiro filho. Nos estados ricos da União, como São Paulo, pesquisas já verificam o adiamento da idade de ser mãe. Neles, as mulheres têm privilegiado a realização profissional e a independência financeira. Mal se pode acreditar que, até bem pouco tempo atrás, ao chegar ao final da adolescência, elas escolhiam entre cursar a faculdade e casar e ter filhos.

Tornou-se comum adiar o casamento ou a maternidade para se dedicar ao trabalho e aos cursos de pós-graduação e MBAs. O resultado é um novo momento de decisão na virada dos trinta anos. Ele é um dos períodos mais importantes da vida profissional para as mulheres. Trata-se de uma idade em que se costuma ocupar cargos intermediários de gerência, e a maioria está casada. Para muitas, é hora de a carreira deslanchar. E a dúvida se instala: ter filhos ou não?

– Mary del Priore.

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“Madona e criança”, de Pompeo Batoni.

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