Desde a Antiguidade, acreditava-se que o leite materno não era mais do que sangue cozido pelo calor do coração. Adquiria cor esbranquiçada para não assustar os bebês. E, desde sempre, amamentar se constituiu em uma forma de poder. Aleitar significava segurança e conservação da prole, presente nas inúmeras representações de Nossa Senhora do Leite. O seio gordo da Virgem, próximo ao rosto redondo do Menino, espelhava a imagem da necessidade satisfeita e a contemplação profunda entre mãe e filho. A intimidade nascida do aleitamento reforçava os laços entre ambos, a mãe modelando a criança à sua imagem. Louvava-se na lactação o prazer de alimentar, mas, também, o de acariciar a criança.
No século XVIII, médicos e confessores viram no aleitamento um “dever”. Pensadores, doutores e moralistas se revezavam para combater a crescente presença de amas de leite e do aleitamento artificial à base de leite de vaca misturado à água. Afinal, sendo “sangue”, o leite transmitiria as características de quem amamentasse a criança.
O bom leite era facilmente reconhecido: branco, inodoro, nem grosso, nem fino. Que “não caísse, nem pegasse muito”, explicavam os médicos. Para conservá-lo, recomendava-se o consumo de alface, espinafre e chicória. “Caldos de farinha, com azeite, ovos e cevada”, sugeria o doutor Antonio Ferreira, ou “cinza de unha-de-vaca bebida”. Emplastros de hortelã e cozimento de malva sobre o seio ajudavam a “desempedrar” o leite. Orações a são Romão, assim como “untar o bico com água açucarada para a criança pegar”, funcionavam como receita para a boa lactação. Mamilos rachados? Aplicar “gemas de ovos bem batidos com mel e açafrão”, respondia o doutor João Curvo. Untá-los com “fel e coisas amargosas” para desmamar os filhos era considerado pecado.
A partir de 1850, a imigração de açorianas substituiu os anúncios de “aluga-se uma escrava parida, da primeira barriga” para “se aluga uma senhora branca, moça, sadia e robusta”. Acreditava-se que o leite transmitia qualidades morais, e o das africanas incentivaria que as crianças ficassem com seus hábitos e costumes, além de “medo, cólera e temor” por elas terem sido afastadas dos filhos. Havia também o risco de transmissão de doenças que acometiam as camadas mais desfavorecidas: febre amarela e cólera, varíola, tuberculose, sífilis, escarlatina, malária, escrófulas, vermes, sarnas, parasitas de cabelo e até mesmo lepra.
As doenças morais, por sua vez, estariam presentes no leite sob a forma de “germes”, que conteriam disposições hereditárias da escrava e se desenvolveriam mais tarde nos pequenos, a exemplo da suposta predisposição das escravas para a promiscuidade. O médico Thomas José Costa, em 1849 , sublinhava:
“A primeira infância é a idade da imitação, são bebidas com o leite, para assim dizer, as boas e más ideias; e os hábitos que se adquirem então são tanto mais difíceis de destruir-se para o futuro, quanto mais profundas são suas raízes. O que é natural dificilmente se pode reformar, e com muita razão se diz, que, se os homens têm qualidades, ou vícios, é sua ama de leite quem primeiro deve ser louvada, ou censurada, porque ela foi sua primeira instituidora”.
O debate sobre amamentação ganhou fôlego na metade do século XIX. Nele, a vilã era a ama mercenária, possível transmissora de doenças físicas e morais. Na outra ponta, nascia a valorização da mãe higiênica e saudável. Periódicos como A Mãe de Família vinham cumprir a missão de influenciar, com suas histórias, as senhoras para que exercitassem seu papel materno, não importando o sacrifício. Culpa e medo foram explorados na tentativa de criar a “nova mãe”, exaltada pelos médicos do período. A ocupação da mãe com a amamentação, entretanto, além de proteger a vida dos filhos, tinha outro papel social: prender a mulher no universo doméstico.
Com a descoberta, em 1838, de que o leite de vaca era mais rico em proteína do que o leite materno, o discurso em favor do leite de vaca passou a prevalecer nas questões sobre nutrição. A partir daí, as descobertas do leite pasteurizado e condensado, da evaporação do leite de cabra e o estudo da composição do leite humano favoreceram a produção do leite artificial. Nas primeiras décadas do século XX, portanto, indústrias americanas já se destacavam na produção do substituto do leite materno. Nesse período, houve desestímulo ao aleitamento materno.
De modo gradativo, ao longo do século XX, a mulher se afastou da função de nutriz, devido à desvalorização da prática de amamentar pelos próprios profissionais de saúde; a práticas hospitalares inadequadas, principalmente no puerpério; a pressões comerciais das indústrias de leite e produtos alimentícios; a mudanças no estilo de vida da mulher; e à falta de orientação e de informações corretas sobre essa questão.
Além disso, as mudanças na família nuclear, a urbanização, o consumo de massa, a mamadeira como sinônimo de artefato moderno, dificultando a transmissão natural dos costumes antigos e modo de alimentação da criança, entre outros fatores, levaram ao decréscimo do aleitamento materno, contribuindo para o aumento da mortalidade infantil. No período de 1961 a 1973, o desmame precoce, associado a outros fatores, como má nutrição infantil, elevou a taxa de mortalidade infantil em até 45% no país.
Na década de 1970, o tempo de aleitamento caiu a proporções menores que as conhecidas anteriormente, embora o aumento da desnutrição e da mortalidade infantil tenha despertado as autoridades sanitárias. Crianças com menos de um ano alimentavam-se mal, com leite não humano. A resposta veio na forma de políticas e propaganda para fortalecer o hábito da amamentação. No fim dos anos 1980, a duração mediana do aleitamento materno passara de 75 dias para 167 dias. Outra investigação de âmbito nacional foi promovida em 1999, para avaliar os indicadores de amamentação na área urbana. O aumento havia progredido, embora estivesse longe do ideal, diziam especialistas.
O aleitamento artificial só teve sucesso graças à explosão dos meios de comunicação e marketing, ou era uma necessidade de longa data? Certamente não foi a inserção da mulher no mercado de trabalho que agilizou a alimentação artificial, mas sim suas condições de trabalho: falta de creches, distância entre a casa e o trabalho, horários rígidos etc. Mas não é só. O leite em pó veio atender outras razões. Descobertas arqueológicas revelam que, desde o século IV antes de Cristo, alimentava-se a criança fora do peito. Antes de ser biologicamente determinado, o aleitamento ao seio é social e culturalmente condicionado. A mulher pode sempre oferecê-lo ou recusá-lo. Ora fardo, ora desejo. Hoje, por exemplo, o aleitamento materno está em alta.
Na tradição cristã, o seio reservatório ajudou a combater o seio erótico. Ele não podia corresponder a nenhuma tentação ou desejo. As Virgens do Leite, representadas com grandes decotes na escultura e na pintura no século XVIII, fecharam-se em golas abotoadas no XIX. De instrumento de sedução por trás de panos transparentes, os seios se tornaram instrumento de nutrição física e moral, de caridade e doação: aos filhos, ao marido, ao amante. Na puberdade, seios sempre foram o signo de afirmação e de diferença sexual. Nos anos 1960, eles se livraram dos sutiãs. Hoje, preocupam: menos sinônimo da palavra “coração”, tornaram-se alvos do câncer que mais ataca as mulheres. Voltaram a se erotizar, recheados de silicone. – Mary del Priore.
“Madonna Litta”, de Leonardo da Vinci (1490-91).
BOM DEMAAAAAIS!!!!!
Lindo e esclarecedor! Mto legal! Me lembrou mto um livro que amo: “Amamentação: um híbrido natureza-cultura”! Bjos