O racismo dos tempos iniciais da República voltou-se também ao combate de tradições culturais. A capoeira e as várias formas de religiosidade africanas tornam-se, segundo o Código Penal de 1890, práticas criminosas, enquanto a culinária dos antigos escravos sofre severa condenação médica. Nem as festas escapam ao furor anti-africano. Em pleno Salvador, os batuques, afoxés e candomblés são colocados na ilegalidade. Enquanto isso, em diversas outras cidades, o entrudo -,comemoração pública na qual os negros participavam como coadjuvantes, nas festas de Momo ou na condição de alvo das brincadeiras com água de cheiro-, começa a perder adeptos entre a elite, que passa a frequentar carnavais em bailes de salão, com serpentina e confete, à moda veneziana.
Como seria de esperar, essas várias formas de intervenção no mundo tradicional da população negra e mestiça deram origem a tipos variados de reações. Algumas delas podiam assumir formas não violentas, como a reação diante da proibição das festas negras. Embora as mudanças promovidas pela elite tivessem por objetivo “desafricanizar” o carnaval, tais medidas acabaram – pelo menos em algumas cidades brasileiras – sendo assimiladas pelas camadas populares. Exemplo disso foi o surgimento do desfile de carnaval na capital republicana. Além do confete e da serpentina, outra importação da belle époque carioca foi a do corso europeu. Nessa festa, os elementos mais distintos e ricos da sociedade desfilavam em carros alegóricos, competindo no brilho e luxo das fantasias. Empresas ofereciam prêmios e jornais acirravam a disputa. Aos pobres cabia assistir passivamente à festa das calçadas; lentamente, porém, eles começaram a se organizar.
Na década de 1920, por exemplo, era fundado o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira, liderada por sambistas e passistas de origem humilde. Dessa forma, o corso da elite foi dando lugar ao desfile popular de escolas de samba, organizadas nas favelas e bairros periféricos do Rio de Janeiro.
No esporte, é possível identificar outro exemplo dessa incorporação popular de inovações elitistas. Importado como um lazer fino e aristocrático, o futebol acabou assimilando o gingado da capoeira e do samba, dando origem a um estilo, definido por Gilberto Freyre, como “dionisíaco” de jogar, um “futebol-dança” que permitiu aos grupos populares vinculados às tradições africanas se sobressaírem. – Mary del Priore
Carnaval no início do século XX: o corso e um baile à fantasia.
Olá! Gostei muito do conteúdo do texto e gostaria de saber duas coisas: indicAções de obras que abordem esse tema sobre as festas populares e as da elite; e a qual texto da Mary del Priore está sendo usado. Obrigada!
Bom dia, Scarlet. Livros de Mary del Priore que abordam o tema: “Festas e Utopias no Brasil Colonial”, “Histórias Íntimas” que fala sobre o carnaval da elite e o da população em geral, assim como “História do Amor no Brasil”. Boa leitura!
Muito obrigada, Márcia!
A república não segregou apenas os negros, mas tentou abolir tudo que era monárquico e mesmo a herança lusitana. Inclusão de negros libertos era muito mais facilitada na sociedade do Império e mesmo no período colonial e na igreja do quê na república. Hoje já encontramos documentos que comprovam o desejo da casa imperial em indenizar ex escravos e dar-lhes terras. O racismo no século XX no Brasil tem suas raízes no positvismo e em teorias eugenicas. O holocausto de Canudos, revela muito bem qual era a ideologia racial e cultural republicana .
Devemos lembrar que foi com Getúlio Vargas que os ‘desfiles’ começaram a ter um padrão ‘militar’ nas avenidas. A ‘ordem’ deveria ser mantida durante o desfecho dos blocos e escolas de samba (não sei se nessa época a denominação de ‘o samba’ já existia).
Podemos concluir, pelo texto, que a monarquia brasileira promovia a inclusão social e que foi com a república que começou a exclusão? É sabido que havia barões negros e que tivemos um Presidente de Conselho de Ministros (ou Primeiro Ministro) mulato no Segundo Reinado. O racismo, então, começa com a proclamação da república? Parece que sim…
De forma alguma, João Baptista! Lembre-se que a escravidão só foi abolida no final do Império e não houve nenhuma iniciativa para incluir os ex-escravos na sociedade. O que o texto destaca é a política racial da República, que é diferente da do Império, obviamente, já que houve mudanças importantes de contexto. Em nenhum momento o texto diz, ou sequer insinua, que o Império promovia a inclusão social e que a República era pior ou melhor nesse sentido. Muito cuidado com esse tipo de comparação, que pode levar a conclusões equivocadas. Se você quiser podemos dar indicações bibliográficas sobre o tema. Obrigada.
Acredito que o livro de Gilberto Freyre, Ordem e Progresso, é extremamente interessante sobre essa época de transição Império e República no nosso país.
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Sou apaixonada por História e vejo com muito gosto a crescente divulgação, de forma atrativa, da História do Brasil. A imitação da cultura européia e a repressão da nascente cultura brasileira, como foi feita. desperta a atenção, inclusive dos jovens, menos afeitos à leitura demorada. Parabéns!