Quaresma: “a Serração da Velha”

A festa está na moda. Graças a ela, cada um sente que está entre todos e ao mesmo tempo, reconstituindo a sua identidade ameaçada pela vida séria, quotidiana e regrada do mundo social. Por outro lado, há quem defenda o seu aspecto subversivo. Ela seria uma reação mais profunda da gente oprimida, à qual é recusado um lugar legítimo na sociedade. Deste ponto de vista, a festa significaria a irrupção das trevas no mundo luminoso da lei e da ordem.

Os estudos históricos não vêm demonstrando, contudo, que o dia seguinte das festas seja aquele de uma nova ordem social. No passado, as classes sociais dominantes utilizavam os transbordamentos da festa como remédio preventivo contra os males da revolta. Na época da escravidão, por exemplo, promoviam-se batuques e lundus. Mas o que se via, na maior parte das vezes, não eram apenas explosões de espontaneidade e transgressão. Nas festas de nítido caráter popular, percebia-se uma vontade consciente, uma organização minuciosa, uma extrema codificação de discursos, gestos e seqüências rituais. Nada era improvisado!

Vamos falar de uma festividade com essas características. Trata-se da “Serração da Velha. Mas o que é, exatamente a “Serração da Velha”? A cerimônia caricata de serrar a velha realizava-se durante a Quaresma. Os dias, variavam, vindo até o sábado de Aleluia: “Um grupo de foliões serrava uma tábua, aos gritos estridentes e prantos intermináveis, fingindo serrar uma velha que, representada, ou não por algum dos vadios da banda, lamentava-se num berreiro ensurdecedor: “Serra a velha! Serra a velha”! E a velha gritando, gritando. Por vezes ocorria essa comédia diante da residência de pessoas idosas e o grupo era repelido a baldes d’água e mesmo tiros de espingarda ou pistola. Noutras ocasiões mediante acordo prévio, os foliões recebiam bolos e bebidas, para a refeição ao amanhecer, porque a serração era durante a noite, para tornar mais sinistro o espetáculo. Vez por outra a Serração da Velha era feita fora da Quaresma e com intenção política, demonstração de desagrado, à porta de um chefe decaído ou derrotado nas eleições. Na década de 1860-1870, a Serração da Velha foi desaparecendo depois de ter chegado ao Brasil, vinda de Portugal, no século XVIII, conta o antropólogo Luís da Câmara Cascudo.

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Um resquício deste tipo de comemoração encontra-se no código de posturas da Vila Imperial de Papari, hoje Nísia Floresta, de 1897, em que se proibia o “brinquedo do cerramento de Velhos” com multa de 5$000 réis ao infrator. O historiador Luís Edmundo descreveu fotograficamente  uma Serração da Velha na capital da Colônia, o Rio de Janeiro. Com muitos versos e em meio a um “berreiro indômito e infernal”, celebravam-na em época típica para o folguedo:

“Serre-se a velha

Força no serrote

Serre-se a velha

Dentro do pipote”

 

Os conjuntos pitorescos de foliões – segundo o mesmo Luís Edmundo – sempre variavam na sua apresentação, luxuosa ou modesta, de acordo com as posses de seus organizadores. Serrava-se a velha ricamente vestida com casaca de chamalote e luvas compridas, sob pálios de seda ou de damasco, ao som de filarmônicas elegantes. Ou na indumentária esfarrapada dos pobrezinhos com dois ou três instrumentos, substituindo o andor e pálios por um simples estrado onde se punha solenemente o barril, prisão onde a velha era encerrada. Os préstitos eram grandes. Reuniam cerca de 150 pessoas, armadas de paus e bandeiras. Na frente, vinha a serra carregada em triunfo, seguida da barrica e de burros enfeitados com flores, sobre os quais montavam a Velha e seu viúvo, sempre fingindo chorar. Fechava o séquito um “tribunal de justiça”, composto por juiz, carrasco e escrivão,  que lia em voz alta para o povo a sentença a ser cumprida.

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Mas quem é a Velha? Certamente, uma representação da morte. Uma das várias que, no passado, à época da Quaresma, percorriam as ruas. Às vezes, a Velha corria empunhando uma foice e revidando a pancadaria dos rapazes que a perseguiam cantando “Oh Morte! Oh piela, tira a chicha da panela!”. Outras, ela acompanhava a procissão das Cinzas. A Velha personificava a Quaresma e Gil Vicente, em sua obra Triunfo de Inverno, representou o inverno como a Velha perseguida por Maio, o moço jovem, o verão. E quanto à função simbólica da Serração da Velha? Câmara Cascudo explica  que tradicionalmente a Velha é uma entidade maléfica ou grotesca, intervindo nas estórias com a função de perturbar a felicidade ou dificultar a conquista de alguma coisa. Como permanência das tradições européias, misteriosa e cheia de poder, ela simboliza a morte, as trevas,  a fome. Com o crescimento urbano, o aumento de violência e das dificuldades de sobrevivência, os jovens “botavam para fora” seus problemas na Serração da Velha. Barulhos, gritaria e ritos aí cuidadosamente representados – o julgamento, testamento e morte da Velha – ajudavam na catarse. Numa batalha simbólica contra a morte, eles celebravam o fim do inverno (em fevereiro, no hemisfério norte), o final da Quaresma e da esterilidade dos campos, homenageando a chegada do verão e da fecundidade, enfim, o poder da juventude. A inversão carnavalesca da poderosa morte, personificada numa frágil Velha serrada, era também uma forma de meditar sobre a passagem do tempo, o envelhecimento e a morte – coisa que hoje, evitamos fazer.

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– Mary del Priore

serração da velha

 

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  1. Luciene Paes

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