Carnaval: dos bailes elegantes às festas de rua

              Quanto ao Carnaval, diversão anual para quase todos, nele muita coisa tinha mudado. Mudado de lugar e de maneiras de brincar. No interior, contou Graciliano Ramos sobre Alagoas, brincava-se como antigamente. As tradições do Entrudo persistiam, sobretudo os banhos de água suja: “moleques armados de bisnagas enormes em bambu” e “indivíduos que traziam em mochilas, pacotes de alvaiade, zarcão, ocre, tintas de todas as cores”, molhavam e pintavam os transeuntes. Bailavam pelas ruas os “parafusos”, tipos incultos em numerosas anáguas que se iam encurtando. As de cima, eram camisas de crianças. “Esses espantalhos andavam inchados por dentro e por fora, pacholas […] Papangus, vagabundos enrolavam-se em sacos de estopa, sujos, as caras escondidas em fronhas, as mãos calcadas em meias, Bobos de máscaras horríveis se esforçavam por aterrorizar os meninos. Gemiam, falavam rouco e fanhoso: – você me conhece? […] Um frevo decente em redor da porta bandeira. Repetiam-se cantigas de dez anos sem alteração, muito bem ensaiadas […] Outros reunidos formavam as críticas, motivo de receios e alarmes. Alusões a notáveis acontecimentos do lugar, comentários a fatos melindrosos e particulares, mexericos tolos sem graça nenhuma. Criavam-se inimigos. E às vezes se liquidavam contas velhas”.

            Nos pequenos lugarejos, o Carnaval permitia “fazer as contas”, até à pauladas, entre uns e outros, em meio à festa.  Já nas grandes cidades, deixava-se para trás as batalhas de flores, as laranjinhas de cheiro e às críticas ao Imperador nas músicas dos cordões do século passado. Mas mantinham-se os mascarados, os Zé-Pereiras e o som de instrumentos variados e barulhentos que convidavam os foliões a vir para a rua. Mas, qual rua? Na capital, danças de mascarados enchiam, não mais as ruas estreitas, mas as largas avenidas. Encarapitadas nos recém-chegados automóveis, as elegantes davam um toque de “modernidade” às velhas fantasias. Nas revistas de elite, ilustrações misturando erotismo e lirismo, exibiam o Carnaval como uma festa refinada. Comerciantes ricos organizavam desfiles de carros alegóricos, montados por escultores e cenógrafos conhecidos. A erotização da folia “elegante” e boêmia se opunha aos “instintos brutais” dos foliões de rua, como se via nos desenhos de Raul Pederneiras.

Cantava-se e conhecia-se de cor as músicas de carnaval.

Em estudo clássico, a historiadora Maria Clementina Pereira da Cunha, assinalou que tanto o teatro de revista quanto o desenvolvimento técnico da imprensa, ajudaram a divulgar modinhas e lundus, a vender partituras além de misturar ritmos “de fora” com “a coisa nossa”. Depois o Carnaval invadiu as ruas, graças ao desfile dos ranchos. Os primeiros a desfilar no Carnaval, ela explica, eram de origem baiana. Tinham porta-bandeira, saloias batendo castanholas em ritmo de marcha, pandeiro, cavaquinho e batedores. Tais ranchos se disseminaram na capital federal. Foram considerados uma inovação positiva, contra a balbúrdia dos cordões. O desfile de ranchos, cadenciado por marchas, era assistido com admiração das calçadas e das janelas. Não faltavam rivalidades entre os ranchos compostos por cariocas e migrantes baianos, mas, segundo a autora, os ranchos “nasceram com toda a aparência de espaços de ordem – amparados pelo apoio condescendente de intelectuais, garantidos pela licença policial, protegidos pela benção de Xangô e do vigário do bairro. Assumiram-se como manifestação folclórica, sossegando a inquietação dos jornalistas desconfiados das folias dos pobres. Estabeleceram bases fixas de organização e aproveitaram a experiência compartilhada de habitações coletivas, da ajuda mútua, dos terreiros de candomblé e do trabalho do porto para consolidar um novo padrão de carnaval”.

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          Em 1933, foi criada a Associação dos Ranchos Carnavalescos. À frente deles vinham capoeiras dando pernadas, acrescentou o musicólogo José Ramos Tinhorão. Entre um desfile e outro, “rolos”, ou seja, pancadarias obrigavam a intervenção da polícia. Também chegara ao Brasil, a novidade do lança-perfume. Laura Rodrigo Octávio conta o Carnaval destas primeiras décadas, em São Paulo:

            “Apesar do meu feitio um tanto retraído, gostava do carnaval. O primeiro de que me lembro foi meio falhado: mamãe preparara com infinito trabalho três palhaços de morim com aplicações de ganga vermelha (que fim levou a ganga?) cosidas com minúsculos pontos de máquina e então recortadas. Eram motivos de alegria carnavalesca, tambores, chapéus, cornetas, sei lá…Depois não nos fantasiamos mais, mas íamos com grande animação para assistir os folguedos da sacada da casa da tia Theolinda. …Sei que a casa dela ficava cheia e Marietta se aboletava numa sacada e eu, sempre de sacristão, ia lhe dando as serpentinas para jogar com os rapazes na rua. Estes carregavam as serpentinas nas bengalas viradas de cabeça para baixo, encontravam uma conhecida, lá ia uma serpentina para a sacada e entabulavam uma troca das tais. Os homens na rua, nas janelas as moças. No terceiro dia eram os préstitos com mulheres lindas, iluminadas por tochas de cores e que davam que falar à pequena cidade de São Paulo….Aos poucos, devagarzinho, surgiram umas garrafinhas estranhas com líquido gelado e perfumado, que pregava susto em quem era alvo de pontaria. Eram pequeninas, não tinham uma tampa atarraxada, fechava-se então com o dedo o minúsculo furo, para poder atacar mais prontamente a criatura visada. Era muito caro, aquele produto vindo da Suíça: LanceParfum Rodo. A princípio os lança-perfumes eram objeto de luxo e lembro-me de uma aposta feita na Casa Bethoven por um rapaz, louco para obter uma caixa de um velhote rico que veio atacar as moças ali onde estávamos. O rapaz pediu-lhe uma bisnaga e o velhote disse que daria uma caixa se ele lhe desse dez beijos: o jovem não trastejou, sapecou-lhe os dez beijos; o velhote de óculos azuis deu-lhe a caixa um tanto desenxabido…Depois, eu mocinha, um mês antes, havia as reuniões na Praça da República onde se juntava toda a gente conhecida do bairro; namoricos, conversinhas, luta de bisnagas. Estas foram crescendo, já havia as duplas e maiores ainda. O Carnaval se deslocou do centro para os lindos corsos na Avenida Paulista; alugávamos então um Landau para os três dias e era uma folia a preparar as fantasias. …Os rapazes em geral andavam pela rua e as jovens nos carros. Moviam-se estes presos nas serpentinas, o chão cheio de confetes e tudo animado só pela alegria; não havia nem músicas, nem álcool”.

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E no interior da Bahia, como se brincava, com quais fantasias e músicas? Resposta com Sant´Ana, em meio a centenas de mascarados e suas troças:

Do carnaval daqueles tempos creio que vai ficando muito pouca coisa e, mesmo o que vai ficando, já sofisticado e não com a naturalidade com que antes se apresentava. Vi falar nas laranjinhas de cera com água perfumada (ou fedorenta) e nos banhos sobre as pessoas que passavam pelo passeio: água lançada pelos moradores, através da janela. Isso já não foi do meu tempo, foi muito antes e já desaparecera. No meu tempo, carnaval era mascarada, fantasia, cordões, grupos e muito cantar, dançar, pular e gritar. Os meninos e rapazes preferiam sair mascarados; as moças, fantasiadas. As mamães fantasiavam os seus menorezinhos. Assisti minhas irmãs, fantasiadas, em “cordões” só de meninas, a desfilar e a cantar e dançar pelas ruas, naturalmente sob a vigilância de alguém mais velho, afora algumas mamães que acompanhavam, ainda ajudando no canto. Fantasias de pierrot, colombina, etc., os enfeites com “pompons”, levando à mão um “mamãe sacode” para passar na cara dos amigos. Muita gente não sabe o que é um “mamãe sacode”, e isto não é mais do que um espanador, feito, porém, de tirinhas de papel de seca colorido ao invés de pena ou palha. Confetes e serpentinas também, e lança perfume. Este vi pouco em Pojuca: coisa cara, só poucos se apresentavam guarnecidos com ele.

Da mascarada, coisa que menino gosta de fazer, penso que a maioria, como eu e outros meninos àquela época, tinha medo de “careta”. Quero dizer que eu, ainda pequenino, me mascarar, eu gostava, mas tinha medo, “estranhava”, como se diz, outro careta. De todos os tipos de máscara, duas me impressionaram bastante e gostava de vê-las passar, embora nos primeiros anos, com a devida distância de segurança, que o medo me dominava: a cabeçorra e o mandu. A cabeçorra era uma cabeça enorme, certamente feita de massa ou papel colado, leve. Quem a usava enfiava a cabeça só no pescoço da dita cabeça, enxergando através de duas pequenas aberturas feitas para isso. Aquela cabeçona enorme, com aquele corpinho a dançar no meio da rua! Já o mandu era um tipo mais barato, feito com uma urupema, um lençol e uma vareta. A urupema sobre a cabeça e, sobre ela, o lençol que era amarrado na cintura, ficando os braços livres dentro daquele espaço fechado; uma vara presa na barriga, horizontalmente, e, enfiado nas pontas como se estas fossem braços, um paletó velho que vestia a barriga e as coxas como se fora o tronco, ficando para cima todo aquele volume já descrito, como cabeça.

             Na capital, Salvador, os blocos tornavam sucessos de opereta, como “A viúva alegre” de Franz Lehá, num evento carnavalesco. Era moda usar episódios do teatro de revista em espetáculos de rua. Os ranchos de negros se apresentavam no Largo de São Domingos, depois na Praça Onze de Julho, com participação vigiada pela polícia, embora muitos grupos, como os “Arengueiros da Mangueira”, desfilassem ao som de música, pancadaria e cachaça.

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O cineasta Roberto Moura, lembra ainda que a gravação do primeiro samba de sucesso, “Pelo Telefone”, em 1917, completou a articulação lundu, maxixe e samba, sucesso absoluto nos carnavais. Em 1920, junto ao samba produzido por profissionais, surgiu a “marcha”, segundo ele, criativa incorporação carioca de músicas negras norte-americanas como o one-step, o ragtime ou o charleston. Por volta de 1928, no Rio de Janeiro, brotaram as primeiras organizações de sambistas no Estácio, em Oswaldo Cruz, nos morros da Favela, no Centro e na Mangueira. O termo “escolas de samba” nascia, segundo a lenda, como senha para driblar a polícia, usada pela famosa Tia Ciata, organizadora de um pagode na Praça XI: “o pagode vai ser na escola”. O samba, antes considerado “coisa de negro”, assumiria o status de símbolo maior da brasilidade, tornando-se, nessa época, o elemento principal de articulação da identidade nacional.

Em Belo Horizonte, Pedro Nava passou seu primeiro carnaval. Carnaval que, segundo ele, acontecia entre o Bar-do-Ponto e as alturas do Estrela. Os setores mais animados eram as calçadas do Odeon e a esquina do Narciso. Nas salas do Clube Belo Horizonte ele viu passar as Holandesas, as Alsacianas, as Tirolesas, as Fadas, as Castelãs, as Pierrettes, as Colombinas, as Flores, todas “dançando decorosamente”. Mas o que o impressionou foram os grupos de “apaches e gigoletes. Eles de casquete, lenço no pescoço e cinta de cetim vermelho. Elas, escandalosamente pintadas, também preto nos vestidos, encarnados nos aventais e nos panos na cabeça. Esse bloco foi duramente censurado e os moços e moças que nele tomaram parte, indexados, por muito tempo, pela Família Mineira melindrada. Pudera! No Clube! De apache e gigolete! Essa mocidade está perdida! Será que o pais não sabem o que é uma gigolete?” – ironizava.

  • “Histórias da Gente Brasileira: República 1889-1950 (vol.3), de Mary del Priore. Editora LeYa, 2017.

 

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Corso carnavalesco virou moda no início do século XX

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