O espetáculo da morte – tradições e mudanças

          O campo santo virou local de piquenique, romaria cívica ou passeios domingueiros. A cada dia 2 de novembro, os jornais publicavam coluna social contando em quais jazigos se rezariam as missas mais concorridas, quais os túmulos mais enfeitados, quem comparecia às capelas, tudo se refletindo, como diria mais tarde Lima Barreto no prestígio e na grandeza dos túmulos. A morte era um espetáculo!

        “O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer isso sem vaidade, porque o prazer dele, de sua magnificência, de seu luxo, não é propriamente meu, mas de vocês […] Enterro e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas por pessoas vivas para os vivos”, ironizava o autor em sua Carta de um defunto rico.

         Mas, isso, no campo das ideias. Na prática, gestos tradicionais e mudanças conviviam. Isso era visível, sobretudo, nos ritos que cercavam os enterros. Notadamente, os de crianças, carregadas em bandejas grandes à cabeça de um portador, muitas vezes, uma criança ele também. Em visita ao Brasil, em 1817, o viajante francês Jean-Marie Debret fez questão de registrar suas impressões:

          “Grupos de círios acesos, colocados em profusão, fazem brilhar as flores e vidrilhos entre os quais não se distingue o pequeno embrião fantasiado de anjo e deitado num pequeno leito de tafetá branco, rosa ou azul-céu, guarnecido com debruns de prata. O rosto descoberto é pintado das mais vivas cores e o penteado consiste numa peruca loura, bem empoada, coroada por uma enorme auréola feita de placa de ouro e prata”. Com quase cem anos de diferença, a missionária Martha Watts, em 1901, escrevia a uma amiga contando ter visto “um lindo bebezinho levado a sepultura em uma bandeja grande, carregado na cabeça por um menino de cor, sem nenhum amigo acompanhando…”.

           Em suas memórias, o escritor e médico Pedro Nava foi mais específico ao contar o fim do filho de uma ama negra: “Um dia, ninguém sabe por quê, foi aquela febre e logo as convulsões que só pararam quando ele se inteiriçou num último arranco e amoleceu, morto! No colo de minha mãe. Ela e a negra, as duas e minhas tias choravam todas taco-a-taco. Sem parar. Meu pai fez questão de enterro de branco e velório como o de parente. O defuntinho foi para nossa sala de visitas. Sobre uma mesa coberta de forro de seda e colcha de renda, o caixão. No caixão de rosa e prata, o anjinho. Fizeram para ele uma túnica de Menino Jesus, sapatinhos de cetim pousados num bolo de algodão afeiçoado em nuvem e cheio de estrelas douradas. A testa cingida de uma profusão de flores e fios metálicos que faiscavam como artifício de São João. ”

            Segundo Câmara Cascudo, no Nordeste até o meado do século XX, a criança morta, o anjinho, era posto no seu caixão, coberto de flores e ficava sobre uma mesa, não numa alcova, mas na sala principal onde os amigos da família permaneciam até a hora do enterro. Durante a “guarda”, ocorria um debate poético entre violeiros e cantadores, glosando ao divino a passagem do menino para a coorte dos anjos de Deus: “Por isso cantando eu louvo, o anjinho que fugiu, deste vale só de prantos, onde a dor talvez sentiu[…] Enfeitado de bonina, o anjo para o céu subiu, um adeus dizendo ao mundo, quando a morrer se sorriu”. Vez por outra, estrondeava a roqueira no terreiro. E gritava-se: “Viva o anjo! ”. Circulavam bebidas de fabricação doméstica, o aluá de milho ou de abacaxi, o vinho de caju ou de jenipapo, a cachaça com casaca de laranja, o café bem forte. As comidas eram secas, especialmente os doces tradicionais. Nada de garfo e faca. Era refeição fúnebre, rápida, silenciosa, contrita. Outros ritos em torno da morte e do morrer permaneceram na primeira metade do século XIX, impressionando o protestante Kidder:

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          “Quando o funeral é de adulto, o contraste é o maior que se possa imaginar. O cortejo sai geralmente à noite. No dia anterior armam um catafalco na casa do morto. À porta colocam um reposteiro preto. Os cavalos, o carro mortuário, os portadores das tochas, vão todos vestidos de negro. O cocheiro leva dragonas portas sobre os ombros, e na cabeça, um “chapeau de bras” com pluma ondulante. O número de tocheiros está sempre em relação com o das carruagens, ao lado das quais formam alas. Vão em geral montados, e os seus longos tocheiros negros, chamejando na escuridão, produzem efeito imponente. Quando o féretro chega à igreja, é transferido para um pedestal alto a que chamam mausoléu, coberto de panos pretos e cercado de círios acesos. Aí fica o morto enquanto celebram as cerimônias fúnebres. O corpo é depois enterrado sob uma das Lages de mármore de que o piso da igreja está repleto, ou colocado em alguma catacumba aberta nas paredes laterais do edifício. O caixão usado no cortejo não é enterrado com o cadáver, mas, conservado na igreja ou na sede da irmandade que o aluga para tais ocasiões. Quando o corpo é colocado na catacumba, atiram cal virgem para acelerar o processo de decomposição; depois de mais ou menos um ano abrem novamente o túmulo e tiram os ossos para limpá-los. Os parentes do morto mandam então encerrar os restos mortais em uma urna que poderá ficar na igreja ou ser removida para a casa. Em geral, porém, as urnas ficam na igreja e as famílias levam as chaves; conta-se, porém, o caso de um homem que levou os ossos de sua mulher para o próprio dormitório. (…)”

             No interior, sobreviveu por décadas a participação na agonia de um membro da pequena comunidade, logo anunciada pelo dobre dos sinos. Eram comunidades de paróquias reduzidas, cujos fregueses podiam se governar pelo som do bronze das torres. Todo aquele grupo social parava, participando dos trabalhos e sofrimentos do indivíduo e da sua família até a última pá de cal sobre a sepultura, com uma volta para a missa de 3O e 7o dia. Os textos litúrgicos antigos incluíam as preces da agonia, outras para um intervalo em que se verificava se o cristão estava realmente morto seguindo-se as orações próprias para o asseio e amortalhamento do cadáver e ainda as preces durante o velório.

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            O consolo ao moribundo que era prodigalizado pela presença de um padre e de membros da confraria religiosa a qual o dito pertencesse. Quando não havia padre por perto, procurava-se uma vizinha para vir “ensinar a bem morrer” o moribundo que ainda “ronca” e não quer despedir-se do mundo, diz Aluísio de Almeida. O padre deveria ouvir a confissão do agonizante e prodigalizar-lhe o sacramento da extrema unção. Com exceção de loucos e frenéticos – pois não possuíam lucidez necessária para recebê-lo – e das crianças – por só terem pecados veniais, não necessitavam absolvição – todos o solicitavam sob pena de morrer excomungado.

            Também em São Paulo, como conta Aluísio de Azevedo, ao morrer alguém da paróquia saía o viático ao som de vibrantes badaladas, e a população já era assim avisada: “Senhor Fora”, “Nosso pai”. Levava-se o viático sob o pálio dos irmãos do Santíssimo Ajoelhavam-se mulheres, abriam-se as rótulas e janelas, onde acendiam-se velas, os militares prestavam-lhe homenagens, O pároco dava a comunhão ao enfermo e voltava para a igreja. Quando soava o toque da agonia, 21 badaladas do sino grande afluíam pessoas à casa do agonizante. A encomendação da alma era feita por um puxador de rezas.

            Em qualquer parte, enquanto alguém morria, outros cuidavam do velório, os parentes masculinos sendo chamados para organizar o funeral. Quem podia, contratava um “armador”, para “armar a casa”, o que significava decorá-la com uma gama variada de panos negros que anunciavam o luto. Até portas e janelas da casa eram ornadas com grande laço de crepe, como conta Félix Albuquerque.  Fazia-se anunciar a morte pelo choro da carpideira ou por uma campainha que a irmandade a que pertencia o defunto, mandava tocar pelas ruas. “Vestidores de defunto”, portugueses e brasileiros, competiam entre si para prestar, ao melhor preço, o melhor serviço. As famílias abastadas mandavam avisar os amigos por “carta convite” especialmente entregue pelos escravos. O cortejo fúnebre iniciava-se na própria casa do defunto, cujo corpo era conduzido à igreja e daí à sepultura. A saída do féretro constituía um momento especialmente celebrado. Em torno do corpo reuniam-se familiares, amigos, vizinhos e todos aqueles cuja presença havia sido pedida pelo defunto, com o objetivo de intercederem por sua alma: pobres, doentes, clérigos eram pagos ou retribuído por participarem nesses cortejos de acompanhamento à última morada. O luto fechado se estendia aos escravos domésticos e crias e estimação.

          A morte era uma festa? Sim, em algumas localidades do Brasil. Por exemplo, em São Luiz, Maranhão, e quem conta é o escritor Pedro Nava. Lavado e amortalhado o corpo, bem-posto no seu caixão, saía imediatamente o cortejo para o seu velório na casa dos amigos. Cada um disputava o pobre morto e queria hospedá-lo em câmara-ardente uma ou duas das vinte e quatro horas que ele tinha para errar de porta, no seu passeio derradeiro. As casas se ornamentavam, cobrindo-se das mais ricas colchas, das mais belas rendas, das mais belas flores, cercada dos castiçais de prata queimando altas velas, e armava-se a mesa para o festim funerário. Abancavam todos. E Nava conta:

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         “Comia-se de rijo: águas ardentes e vinhos corriam como o Pindaré e o Itapicuru nas grandes cheias. Depressa minha gente que ainda temos muita casa para entrar antes da última…E seguia o préstito aumentado em cada esquina pela perspectiva de vinhaça e comezaina. No fim, o caixão oscilava incerto em mãos variáveis e o defunto, já passado a segundo plano, era apenas elemento acessório da procissão que seguia – festiva e lúgubre – com arrotos, soluços, ânsias de vômito, imprecações de órfãos, fungações de riso abafado e gritaria da viúva a todo pano. Só na hora do memento e do abismo dos sete palmos cessava o alarido e todos silenciavam num arrepio – cada qual pensando no dia da Cólera em que seria pretexto de bródio igual”.

           Em geral, os enterros realizavam-se ao cair da tarde ou mesmo à noite fechada. Naqueles tempos, o enterro de alguém era cerimônia á qual compareciam os moradores da cidade com certo prazer. Ali se encontravam os amigos e inimigos, contavam-se anedotas, falava-se mal da vida alheia, conversava-se em voz alta, exaltavam-se as qualidades do recém falecido ou desancava-se, de rijo, na sua pele ainda quente, e comentava-se a pobreza ou a fortuna deixada pelo mesmo.

          A partir dos anos 70, o chamado “chorão”, vestido usado por mulheres de luto cedeu à elegância. Jornais multiplicavam ofertas de vestidos requintadamente de luto em “veludo preto de seda”, “tafetá chinês cor de café”, ou “lírio” para o luto aliviado. As tarlatanas brancas com picos pretos ou “bordada a prata” entram na moda, assim como os “cretones” de todas as origens: suíço, belga, “da Pérsia”, “da Rússia” e etc….Com a democratização da fotografia, era comum portar ao pescoço, sobretudo as mulheres, um medalhão com imagem do marido ou dos filhos perdidos.

            Se algumas tradições resistiam, outras minguaram. O medo do julgamento final ligado à necessidade de prestar pessoalmente conta de seus atos, se esvaía. Inferno e diabos com tridentes à mão à espera do pecador passaram a ser imagens do passado. A segunda metade do século XIX se queria científica, afinada com a chegada do trem, da eletricidade, da telegrafia. O testamento, antes feito como uma confissão de desregramentos vividos no passado do moribundo ao testamenteiro que se ocupava das missas pelas almas, dos legados pios, resolvendo qualquer pendência que o testador deixara em vida, dava lugar a disposições sobre bens a deixar. O advogado e o médico tomavam o lugar do testamenteiro e do padre, ao lado do moribundo.

            Diga-se, por fim, que a licença para a fundação e manutenção de uma empresa funerária, encarregada do fornecimento dos caixões e demais objetos e alfaias peculiares ao serviço dos enterros, foi concedida com privilégio, pelo prazo de meio século à Santa Casa de Misericórdia, pelo decreto 843, de 16 de outubro de 1851.

  • Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Império (vol.2). Editora LeYa, 2016.

Jean-Baptiste Debret.

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