“Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo…além da
sífilis, é claro
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora…”– Fado Tropical, de Chico Buarque.
O Ministério da Saúde registrou um aumento impressionante dos casos de sífilis, principalmente entre as grávidas e bebês recém-nascidos. Em 2012, 17,1% das gestantes eram portadoras da doença. Em 2013, esse índice subiu para 21,4. Os bebês dessas mães sofreram as consequências do problema. Em 2012 eram 11,6% infectados. Dois anos depois já chegavam a 13,7%. A prática do sexo sem preservativos é apontada como a principal causa do ressurgimento da moléstia nos dias de hoje.
A sífilis, como lembra a letra de Chico Buarque (por sinal, censurada pelo regime militar) esteve presente no processo de colonização. Gilberto Freyre, em “Casa Grande & Senzala”, aborda o tema, destacando que muitos acreditavam que a doença era efeito do clima ou do calor. E que não era motivo nem de alarme, nem de vergonha. Pelo contrário, era o atestado de entrada dos meninos brancos no mundo masculino adulto. Desvirginando-se por volta dos 12 anos, o menino exibia com orgulho as marcas deixadas pela sífilis em seu corpo. Mostrava, assim, que deixara de ser “donzelão”.
As marcas da sífilis, ou “mal francês” como era chamada, eram um sinal que distinguia aqueles que já “conheciam mulher”. Mas, a cura poderia ser mais bizarra que o orgulho de exibir a moléstia. Conta Freyre: “Mulecas de doze a treze anos eram entregues a rapazes podres de sífilis” devido à crença “de que para o sifilítico não havia melhor depurativo que uma negrinha virgem”. E assim seguia a doença, matando e cegando nas casas-grandes e nas senzalas.
Luís dos Santos Vilhena, na Bahia nos fins do século XVIII, não acreditava que o calor fosse o responsável pela propagação da doença, que, para ele, era fruto da “desordenada paixão sexual”. Ao contrário do que pensava Freyre, Vilhena acreditava que os escravos teriam trazido a moléstia para o Brasil, transformando o clima saudável da colônia em um ambiente mortífero que “tendo sido admirável, por sadio, pouco ou nada difere hoje do da Angola […]”. Em princípios do século XVIII, o Brasil já era assinalado em livros estrangeiros como terra da sífilis por excelência.
Há muito debate em torno da origem da sífilis, que ainda causa polêmica. Há registros de casos na Europa, desde o final do século XIV. Madame d’Aulnoy, deixou um relato de sua viagem à península Ibérica, no século XVII, no qual relata que os jovens de famílias aristocráticas desde os doze ou quatorze anos, tinham suas “mancebas” ou amantes, havendo poucos que em tão verdes anos não estivessem atacados de males venéreos. Que tais mancebas, ostentavam joias e vestidos caros. Que se educavam, juntos, filhos legítimos e ilegítimos. E que nas casas mais nobres se falava abertamente das doenças do mundo, ou seja, da sífilis.
Mary del Priore nos conta em “Histórias Íntimas” que com a instituição dos bordéis no Brasil, no século XIX, a sífilis se espalhou mais ainda. “Há quem fale até em sifilização das grandes capitais. Multiplicavam-se os manuais de venereologia e descobertas, feitas na primeira metade do século, permitiam identificar os cancros simples dos infectantes. Descreviam-se obsessivamente os desdobramentos da doença nos rins, no fígado e no sistema nervoso, criando uma angústia surda em torno do assunto. Usava-se e abusava-se de mercúrio para sanar as chagas fétidas, assim, como de negrinhas virgens a quem se creditava limpar o sangue. Os jornais multiplicavam anúncios de remédios milagrosos e não foram poucos os homens públicos, senadores e poetas que morreram deste mal”, diz.
Quando à sífilis congênita, a historiadora destaca também que a moral social, que dava ao sexo masculino todas a liberdade e nenhuma ao feminino, tornava difícil à confissão da mulher sifilítica. “Exageravam-se as responsabilidades dos pais enquanto as mães gozavam de certa imunidade sobre a falta cometida. Inocentavam-se as esposas até prova em contrário. Os sintomas da sífilis primária sendo difíceis de reconhecer na gestante, aumentavam a culpa do homem. A crença de que a mulher ficava durante muito tempo impregnada pelo sêmen do primeiro parceiro, justificava filhos segundos e terceiros infectados. A doença desfigurava, transformando belas em feras, homens em monstros. O famoso Elixir de Nogueira estampava em seu rótulo a imagem de uma destas criaturas coberta de cancros. O machismo era tanto, que poucos pensavam na hipótese de infidelidade feminina”.
Com a industrialização e a urbanização, a prostituição doméstica, tão presente no meio rural e patriarcal, foi substituída pela prostituição urbana e estrangeira acompanhada pelo caftinismo: fenômeno novo na vida brasileira, a inspirar autores como Graça Aranha, José Veríssimo, Adolfo Caminha, Viveiros de Castro ou um João do Rio.
Segundo Mary del Priore, foi Di Cavalcanti que em suas memórias recorda uma Sofia, polonesa de cabelos de fogo, em cujos braços não só aprendeu a fazer amor como ouviu advertências: “não andar com mulheres sujas” e ter cuidado com a saúde. “Outras tantas sofias concorreriam para melhor higiene sexual de rapazes e homens que apesar do medo da sífilis eram bem descuidados como o foram Raul Pompéia, Emílio Cardoso Ayres e Santos Dumont. Chegava amorosamente nos braços destas Mimis a consciência sanitária; uma das características do início do século de que foram apóstolos Osvaldo Cruz, Carlos Chagas, João Daudt Filho, entre outros”.
Texto de Márcia Pinna Raspanti.
“A Ruiva”, de Henri de Toulouse-Lautrec.
Mesmo pensando com a mentalidade da época, é duro imaginar como era ignorante o nosso povo. E, em muitos casos, ainda é.
Como sempre, Márcia, um excelente texto. Um abraço.
Obrigada, Osvaldo!
Excelente artigo. Parabéns.
Obrigada!