No Brasil, a pílula chegou envolta em diversas questões: uma delas era a preocupação de evitar a superpopulação. Em abril de 1960, por exemplo, a revista “Seleções”, num artigo intitulado “Gente demais! Que fazer?” alarmava os leitores sobre as consequências de um planeta superpovoado. Os perigos eram tão maiores, quando essa população, num contexto de Guerra Fria, podia alinhar-se “do lado errado”, ou seja, do lado dos comunistas.
Considerado um “continente explosivo” pelos políticos norte-americanos, a América Latina recebeu as bênçãos da contracepção antes mesmo da França. Aqui, pílula e DIU foram comercializados desde os anos 60, enquanto no Hexágono, só em 1967. Começaram, então, a ser criados organismos de ajuda que propunham a adoção de estratégias de redução do crescimento populacional. Por quê? Pois pobreza e natalidade alta, ou seja, “a bomba demográfica” era um perigo a evitar. A comercialização teve início em 1962. Jornais e revistas voltados para o público feminino informavam sobre suas vantagens. Obstetras e ginecologistas, por seu lado, divulgavam seu uso entre a clientela.
Em 1968, o presidente do Banco Mundial visitou o Brasil e sua declaração sobre a necessidade de controle dos nascimentos nos países subdesenvolvidos gerou mal estar. Temia-se que os empréstimos internacionais fossem acompanhados de uma tentativa de controle demográfico. Um projeto circulava, então, no Congresso Nacional no sentido de baratear o preço dos anticoncepcionais. O presidente Costa e Silva, contudo, foi dos primeiros a apoiar a Encíclica “Humanae Vitae” na qual o Papa Paulo VI condenava o controle governamental sobre a natalidade e só aceitava a abstinência sexual como método contraceptivo. Como se vê, o assunto não foi unanimidade no seio do governo militar. Por um lado, “antinatalistas” reivindicavam um modelo de desenvolvimento que tinha na redução da natalidade um paradigma de país desenvolvido. Por outro, os “anticontrolistas” pregavam a “ocupação dos espaços vazios” e a importância de multiplicar brasileiros em todas as partes do país. O governo não interferiu diretamente, mas sociedades civis internacionais estabeleceram-se aqui, atuando nas camadas populares.
Se o assunto era discutido pelas classes médias, matéria de “Veja”, em outubro de 1968, perguntava-se, que conhecimentos tinham as brasileiras pobres sobre a pílula. Mariana, moradora de um cortiço, que já fizera abortos por métodos do tipo “pode deixar que eu sei”, e usava tampões com água oxigenada ou salgada para evitar a gravidez, dizia que já tinha ouvido falar que existia outros métodos de contracepção mas que “dentro de mim ninguém mexe”. O artigo demonstrava que o desconhecimento acerca dos modernos métodos contraceptivos, além de multiplicar a população, empurrava tais mulheres para a prática do aborto. Outra entrevistada, a balconista Antônia, 19 anos, assim definia os métodos para se evitar gravidez: “Isso é sem-vergonhice. Amor e maternidade são as coisas mais lindas do mundo”. Já para Ivani, mãe de 9 filhos, “O casamento tem como fim a constituição da família. A pílula pode contribuir para que o casal se esqueça disso, vivendo apenas como macho e fêmea. E só nisso não pode haver amor e respeito”. Segundo a matéria, se a Igreja permitisse o uso de pílulas anticoncepcionais, “os 19% de mulheres que as utilizavam poderiam subir a 45%”.
A partir dos anos 60, embora as políticas populacionais estivessem voltadas para as camadas desfavorecidas, milhares de mulheres experimentaram a contracepção. Seu objetivo era um só: reduzir o número de filhos. Em 1967, em artigo sobre “A mulher brasileira, hoje”, a revista “Realidade” informava que 87% delas achavam importante evitar filhos. E 46% adotavam alguma forma de contracepção: “tirar”, por exemplo, era a palavra mais usada para falar do “coito interrompido”. Porém, 19% já adotara a pílula.
Tudo tranquilo? Não. Muitas mulheres queixavam-se dos efeitos colaterais. No início dos anos 70, o debate na imprensa sobre benefícios e malefícios da pílula teve início. Sob investigação no Senado americano, a drágea passou a ser fornecida apenas sob prescrição médica. A medida gerou reações variadas. Uma universitária carioca de 23 anos, entrevistada pela revista “Veja”, reagia: “Todos fazem campanha contra os perigos da pílula. E da cortizona – muito mais perigosa – ninguém fala?” Já uma paulista, casada, de 26 anos, fazia o seguinte comentário: “Minha irmã começou a tomar a pílula faz três semana. Com toda essa onda, já parou”. Entre as principais acusações contra a pílula, as mais graves eram a de causar tromboses e até mesmo câncer. O resultado foi o aumento de cirurgias de esterilização. Um aumento de 100% em relação à década anterior.
A Igreja Católica não dormia. Vários documentos associando a pílula e o pecado seguiam bombardeando os fiéis. A própria encíclica “Humane Vitae” fora uma pá de cal entre os católicos esperançosos da aceitação da pílula. Dom Lucas Moreira Neves, contudo, tinha outra leitura: não se tratava de mera condenação. Mas de incentivo a que os cientistas aprimorassem, “o mais depressa possível”, o método da continência periódica.
No início dos anos 70, apareceu uma “pílula masculina”.“Veja” deu ampla cobertura. Mais uma vez, discutiam-se os efeitos colaterais: aumento de peso e, sobretudo, a diminuição do apetite sexual. Para o cientista Elsimar Coutinho, “Nas mulheres, entretanto, esse aspecto não é valorizado. Muitas aceitam submeter-se a uma atividade sexual não satisfatória em troca da garantia de não conceber”. Passados quinze anos do desembarque da pílula, as taxas de natalidade começavam a mostrar declínio em relação às décadas anteriores. O IBGE registrava os reflexos da mudança de comportamento da classe média brasileira. Ela tinha, cada vez, menos filhos. Segundo uma pesquisa patrocinada pela Fundação Ford essa mudança estava relacionada com a maior oferta e consumo de anticoncepcionais orais e preservativos. A pesquisa mostrou, por exemplo, que o consumo de caixas de pílulas saltou de 6 milhões em 1966 para 38 milhões em 1974. Ou seja, um aumento de 375%.
Nos finais dos anos 70, o “planejamento familiar” tornou-se um bordão. Discutia-se a crescente preocupação com o tema, no Brasil e no mundo. Entre nós, o fantasma da pobreza, da violência e da mortalidade infantil imiscuía-se nos debates em curso na imprensa. – Mary del Priore
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