O Carnaval sem pudor: nudez e erotismo

           Se até meados do século XX, e, em grande parte, a gente brasileira vivia a repressão do erotismo e da nudez, a partir dos anos 60, observou-se uma clivagem. O corpo despido lentamente se disponibilizou. Lentamente, também, caíram os panos. A nudez deixou de ser sinônimo de proibição e tudo o que dissesse respeito à sexualidade, começou a ganhar o centro da vida social, servindo inclusive às estratégias de consumo. Para vender revistas, a Manchete colocava em suas capas, belas mulheres de biquíni. Biquínis que, à medida que o tempo passava se reduziam. No Carnaval, quanto mais fotos de “peladas”, melhor. Revistas de “mulher pelada” se multiplicavam: Lui, Personal, Relax e outras eram consideradas, por um bem-humorado editor como “uma linha educativa, pois 90% dos brasileiros formam-se sexualmente nas ruas”! Cigarros e cervejas? O erotismo das imagens de propaganda convidava a saborear o produto. Um bom exemplo da diferença entre gerações frente a questão da nudez foi dado pelo escritor e jornalista Nelson Rodrigues. Era o verão de 1968 e, durante o Carnaval, ele manducava:

              “Ainda hoje passei pela Avenida Atlântica; fiz o itinerário obrigatório do Forte ao Leme. Vi, várias vezes, esta cena: – uma menina linda, de biquíni, comprando um refrigerante na barraquinha. O crioulo destampava a garrafinha. Estava ali, por certo, um dos brotos mais lindos da terra. Mas aquela nudez, dentro da luz, não interessava a ninguém. A garota vinha do mar. E ela, na graça inconsciente do seu gesto, bebia pelo gargalo. O crioulo do Grapete não lhe fazia a concessão de um olhar. Nenhuma curiosidade. Olhava para o outro lado e era cego, surdo e mudo para a nudez adolescente, tão próxima tão tangível. Eis o que eu queria dizer: – as duas coisas seriam impossíveis no velho carnaval. Nem a nudez da menina, nem o tédio do homem. Lembrei o biquíni porque nunca a mulher se despiu tanto para os quatro dias. Nos bailes, nas esquinas, nas calçadas, há uma nudez indiscriminada e obsessiva. E vem um cruel tédio visual de tantos nus absurdos”.

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           Nelson tinha nostalgia do que chamava “hermético pudor”. Ele já não existia mais. E, tudo indicava, não fazia mais falta. Ia longe o tempo em que Celly Campelo cantava que “Ana Maria” enrubescia ao botar “um biquíni de bolinha amarelinha, tão pequenininho”! No final da década de 60, o Secretário de Segurança Pública do Espírito Santo proibira o uso do biquíni e da sunga nas praias capixabas. Resultado? Pressões e mais pressões. Os jornais locais, “O Diário” e “O Jornal” não perderam tempo e foram as ruas. A enquete revelou que ninguém apoiava a atitude abafada em zelo. Um entrevistado chegou a perguntar ao Secretário por que não fizera o mesmo em Copacabana, quando era administrador regional?

           Minas Gerais não ficou atrás e em Monte Claros, ergueu a voz um apóstolo do pudor. Era o padre Geraldo Zuba que investia contra “a mulher nua”, dando início a uma campanha radical. A sensualidade – explicava – iria afundar a humanidade no pecado e no vício. O biquíni e a minissaia eram apenas o início do fim. E por outras razões Nelson Rodrigues concordava com padre Zuba. Em entrevista à revista Veja, em junho de 1969, lá estava o famoso jornalista a fustigar os consagrados retalhos de pano:

 “(…)

VEJA – E o carnaval?

NR – O carnaval está morto pra burro. E o que mata o carnaval é o impudor. Antigamente, quando havia pudor, o carnaval era a festa mais erótica do mundo. Hoje, o pudor é um anacronismo intolerável. E, então, o carnaval está morto?

VEJA – Daí a sua aversão ao biquíni?

NR – O biquíni é um caso óbvio. O biquíni é a degradação da nudez. A nudez, para que tenha um valor plástico, para que tenha um interesse visual, na pior das hipóteses, exige o desejo. Mas eu vou além: a nudez exige o amor. Portanto, a nudez sem o desejo e, pior ainda, a nudez sem o amor é o que há de mais feio. E isso se verifica observando na praia os corpos mais lindos do mundo, ali no Castelinho, ou em Copacabana, corpos adolescentes, meninas de dezessete ano s[…]. E nada disso inspira a mais vaga, a mais remota curiosidade a ninguém. Ninguém se volta para ver essa nudez que ninguém pediu, que ninguém desejou, que ninguém amou.

        Já no final dos anos 70, as tentativas de institucionalização da prática do topless foram “sumária e estupidamente rechaçadas por indignados e ofendidos banhistas conservadores”, reagiam alguns jornais. Em fevereiro de 1980, na praia de Ipanema, um episódio quase terminou em linchamento, quando certa turista gaúcha tirou a parte superior do biquíni e começou a desfilar acompanhada por um amigo. Como já havia acontecera antes, com outras ousadas banhistas, uma “multidão excitada” se formou ao redor do casal e, em pouco tempo, uma centena de pessoas, aos gritos de “Geni”, referência à música de Chico Buarque, corria atrás deles atirando areia e latas de refrigerante vazias. Revistas e jornais bombardearam seus leitores com imagens. Para acabar com a confusão, a Polícia Militar teve que intervir com cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo. Em outro caso, também em Ipanema, um vendedor de melancia, sacou o facão para defender outra turista, desta vez, francesa, que estava de topless e foi cercada por uma multidão “dos que queriam mais e dos que não queriam nada”.

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        Para o Ministério da Justiça o topless era apenas mais um sinal da “onda de permissividade” pela qual o país passava. De maneira geral, as autoridades se mostravam flexíveis a esse respeito. O Secretário da Segurança, por exemplo, havia resolvido liberar o topless durante o carnaval. “Se as mulheres que o usarem não atrapalharem o andamento do carnaval não haverá problemas”, dizia.

  • Texto de Mary del Priore.
Manchete 880 - Carnanaval 1969

Revista Manchete destaca o carnaval de 1969

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