Romantismo e casamento nos dias de hoje

Muitas mulheres se casam esperando que o amor lhes traga felicidade. Mas a felicidade não é outorgada a ninguém em bandeja de prata, prevenia Carmem da Silva. O mundo não é um mar de rosas, nem um campo de batalha, mas uma planície onde cada uma há de construir o edifício de suas aspirações. Dentro dessa orientação, dizia a cronista da revista Cláudia, o amor não nos brinda gratuitamente com felicidade; ele oferece, sim, uma oportunidade de ser feliz. “Se não participamos, de modo consciente e generoso do jogo mútuo de dar e receber, a oportunidade há de se frustrar.” E incentivava: “Perder um bem é fatal para quem o recebeu como dádiva, mas quem o construiu por seus próprios meios, sabe que pode repetir a proeza, se as circunstâncias assim o exigirem”.

Tudo indica que os conselhos ainda são válidos, sobretudo, quando se distribuem pelos muros da cidade os anúncios: Trago seu amor em cinco dias! Ou se multiplicam os livros de autoajuda, prometendo receitas infalíveis para se ter amor eterno. “Eu te amo” é declaração que existe em todas as línguas. E que se diz com a língua. Tornou-se um clichê mundializado o I love you. Filósofos discutem em longos tratados: o amor se tornou um estratagema banal? Ou é uma maneira de dizer “muito obrigado” à vida? Para Platão, a frase queria dizer: “Eu te quero, você me faz falta”. Para Aristóteles: “você é a causa de meu júbilo e isso me alegra”. Há quem declare que a quem se ama não precisa dizê-lo. Ou como disse um poeta: “Eu te amo, para sempre, essa noite”. Para outros, amar é uma tarefa infinita. Para outros, ainda, uma utopia. Para a fenomenologia cristã, trata-se de um apelo a uma resposta que só Deus pode dar. Para os céticos, ele substituiu a religião. Para os anticapitalistas, é um meio de resistir à obrigação de gozar egoisticamente de tudo o que nos oferece a sociedade de mercado. Em suma, o amor é tudo e mais um pouco.

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Por isso mesmo, quando o amor deixa de existir, os laços também se desfazem, para se refazerem com outrem. A diferença é que, no século XXI, passou-se do casal fusional (1 + 1 = 1) ao casal fissional (de fissão), ancorado em nova equação: 1 + 1 = 3, pois cada qual guarda metade de sua independência. O casal torna-se um terceiro “lugar”, no qual se faz junto o que se gosta de fazer junto. Hoje, ser casal significa, para a maioria das zonas urbanas, “ser livre juntos”, numa parceria em que Direito, na forma de contratos e pactos, tem cada vez mais o que dizer. As crianças também se beneficiaram dessa democratização. Mesmo que relações hierárquicas ainda prevaleçam, a valorização da infância e o respeito à singularidade dos filhos são uma constante entre os pais. E é muito provável que, entre os que transformam o amor conjugal em investimento de curto ou médio prazo, o longo prazo se transfira para os filhos.

Em toda a história do amor, o casamento e a sexualidade estiveram sob controle: da Igreja, da família, da comunidade. Só o sentimento, apesar de todos os constrangimentos, continuava livre. Podia-se obrigar indivíduos a viver com alguém, a se deitar com alguém, mas não a amar alguém. Hoje, as coisas mudaram. Apesar dos riscos da aids, a sexualidade foi desembaraçada das mãos da Igreja, separada da procriação, graças aos progressos médicos, e mais: foi não só desculpabilizada como exaltada pela psicanálise . Atualmente, a grande ausência de desejo é que é culpada. O casamento, fundado sobre o amor, escapa às estratégias religiosas ou familiares; o divórcio não é mais vergonhoso, e os casais têm o mesmo tratamento perante a lei. A realização pessoal se coloca acima de tudo: recusamos a frustração e a culpabilização.

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Essas questões são novas para a mulher brasileira. Suas avós sequer se preocupavam em gozar, palavra que só começou a frequentar o vocabulário corrente nos anos 1980, pois, no passado escravagista e patriarcal, cujas permanências encontramos até os dias atuais, mulher não perguntava. Obedecia. Primeiro aos pais, depois ao marido ou companheiro. O silêncio era lei: sobre sexualidade, afetos ou problemas familiares. Nos últimos cinquenta anos, entretanto, assistimos a grandes mudanças. A chegada da pílula anticoncepcional e a entrada da mulher no mercado de trabalho deram-lhe autonomia financeira e física. Essa autonomia, por seu lado, acelerou as transformações no casamento e nas relações entre os sexos. Se antes os papéis eram delimitados – homem na rua, mulher em casa; esposa versus marido; homem provedor e mulher submissa –, hoje, multiplicam-se os arranjos familiares e os papéis dentro deles.

– Mary del Priore

kiss

 

“O Beijo”, de Auguste Rodin (1886).

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