Nudez, biquínis e topless: seria o fim da sedução?

Verão de 1968. Durante o Carnaval, Nelson Rodrigues meditava:

“Ainda hoje passei pela Avenida Atlântica; fiz o itinerário obrigatório do Forte ao Leme. Vi, várias vezes, esta cena: – uma menina linda, de biquíni, comprando um refrigerante na barraquinha. O crioulo destampava a garrafinha. Estava ali, por certo, um dos brotos mais lindos da terra. Mas aquela nudez, dentro da luz, não interessava a ninguém. A garota vinha do mar. E ela, na graça inconsciente do seu gesto, bebia pelo gargalo. O crioulo do grapete não lhe fazia a concessão de um olhar. Nenhuma curiosidade. Olhava para o outro lado e era cego, surdo e mudo para a nudez adolescente, tão próxima tão tangível. Eis o que eu queria dizer: – as duas coisas seriam impossíveis no velho carnaval. Nem a nudez da menina, nem o tédio do homem. Lembrei o biquíni porque nunca a mulher se despiu tanto para os quatro dias. Nos bailes, nas esquinas, nas calçadas, há uma nudez indiscriminada e obsessiva. E vem um cruel tédio visual de tantos nus absurdos”.

Nelson tinha nostalgia do que chamava “hermético pudor”. Ele já não existia mais. E, tudo indica, não fazia mais falta. Ia longe o tempo em que Celly Campelo cantava que “Ana Maria” enrubescia ao botar “um biquíni de bolinha amarelinha, tão pequenininho”! No final da década de 60, o Secretário de Segurança Pública do Espírito Santo proibira o uso do biquíni e da sunga nas praias capixabas. Resultado? Pressões e mais pressões. Os jornais locais, “O Diário” e “O Jornal” não perderam tempo e foram as ruas. A enquete revelou que ninguém apoiava a atitude envolta em zelo. Um entrevistado chegou a perguntar ao Secretário por que não fizera o mesmo em Copacabana, quando era administrador regional.

Minas Gerais não ficou atrás e em Monte Claros, ergueu a voz um apóstolo do pudor. Era o padre Geraldo Zuba que investia contra “a mulher nua”, dando início a uma campanha radical. A sensualidade, explicava, iria afundar a humanidade no pecado e no vício. O biquíni e a minissaia eram apenas o início do fim. E por outras razões Nelson Rodrigues concordava com padre Zuba. Em entrevista à revista Veja, em junho de 1969, lá estava o famoso jornalista a fustigar os consagrados retalhos de pano:

NR – O biquíni é um caso óbvio. O biquíni é a degradação da nudez. A nudez, para que tenha um valor plástico, para que tenha um interesse visual, na pior das hipóteses, exige o desejo. Mas eu vou além: a nudez exige o amor. Portanto, a nudez sem o desejo e, pior ainda, a nudez sem o amor é o que há de mais feio. E isso se verifica observando na praia os corpos mais lindos do mundo, ali no Castelinho, ou em Copacabana, corpos adolescentes, meninas de dezessete anos […]. E nada disso inspira a mais vaga, a mais remota curiosidade a ninguém. Ninguém se volta para ver essa nudez que ninguém pediu, que ninguém desejou, que ninguém amou. […] Quer dizer, a nudez do biquíni tem a maior solidão da Terra: a mulher mais invisível do mundo é a mulher de biquíni.”

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Chocado, Nelson não entendia o que via. Não se tratava de moda, mas da evolução da moral moderna. Proibido pelo Vaticano em 1964, o acessório criado pelo francês Louis Réart em 1946, tomou o mundo das praias, do lazer e das férias de assalto. Foi proibido em vários países: Austrália, Bélgica, Espanha e França. Mas o uso nas telas de cinema, graças a figuras como Jane Mansfield, Marylin Monroe, Brigitte Bardot e Úrsula Andress, ajudou a consolidar sua comercialização.

Ao final de 1969, o biquíni diminuía enquanto sua venda aumentava. Não faltavam reservas. Aceitos entre São Paulo e Rio, impressionavam mal na região Nordeste e causavam temor no Sul tradicionalista. Os donos de confecções refletiam oscilavam entre fabricar maiôs clássicos ou biquínis. Na época, o problema era estético. Para usar biquíni, dizia o gerente da Malharia Águia, no Rio de Janeiro, era preciso um corpo perfeito como os que via Nelson Rodrigues pelas praias e piscinas:  “isso é raro. Juventude dura pouco e por isso a preferência pelo biquíni dura pouco”. Por isso, os “confeccionistas” concordavam que, as brasileiras em geral ainda preferiam o maiô clássico.

No início dos anos 70, as mulheres hesitavam em cobrir-se, mais ou menos, nas praias entre Rio e São Paulo. Na França, porém, o topless já começara. Em nome de um bronzeado uniforme a moda era tirar a parte de cima dos biquínis. A notícia circulou, mas a moda não pegou nos trópicos.

Retribuíamos com a diminuição dos retalhos e muita discussão. A revista Veja, em número de janeiro de 1973 anunciava um “longo strip-tease” na matéria “A caminho do nada”. Aquele verão marcaria o “gran finale” em direção à progressiva nudez, com o surgimento da tanga: reduzida a dois triângulos, na frente e atrás. A novidade, porém, estava restrita a algumas poucas centenas de metros da praia de Ipanema. A matéria prosseguia, fazendo referência ao periódico Pasquim que foi um dos primeiros a explicar as razões da diminuição da parte de baixo dos biquínis: “já que a polícia mostrou-se disposta a não permitir no verão carioca o que aconteceu no verão europeu: a abolição da parte de cima”. De fato, a Divisão de Censura e Diversões Públicas da Secretaria de Segurança da Guanabara havia proibido a prática do topless.

A visão do famoso cartunista e jornalista Ziraldo era desfavorável à tanga. Para ele, o modelo mais deformava que realçava: “o bumbum é intocável. Deve ser mostrado em toda a sua beleza ou inteiramente protegido, como se protegem os anjinhos com um pano roxo, durante a quaresma”.

Se na zona Sul, as tangas e seus variados acessórios – camisetas molhadas transparentes, tiras de látex ou lenços em lugar do sutiã e até calcinha e sutiã em vez de biquínis – faziam sucesso, nos subúrbios não acontecia o mesmo. Na praia de Ramos raramente eram vistos maiôs mais ousados, encarados pelas banhistas como feios, indecentes e imorais.

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Afonso Faisal que usava em Ipanema uma cueca francesa como calção de banho afirmava que “Para ver mulher despida, não é mais preciso ir a um teatro de revista”.  Walter Pinto que, como já vimos, durante 25 anos mostrou mulheres seminuas no palco do velho Teatro Recreio, no Rio, concordava: “Hoje meus antigos fregueses, que pagavam 10 cruzeiros por um strip-tease, preferem ir à praia onde, em troca de um cachorro quente e alguns refrescos, presenciam um belíssimo espetáculo”. E Carlos Machado, o rei da noite carioca e há 32 anos como produtor de espetáculos musicais, jogava a pá de cal: “as vedetes agora estão na praia, sem saltos, sem plumas, sem penteados e muito mais despidas”.

A guerra dos pelados não parou por aí. No verão de 80, novidades. Era a tanga unissex, a knitknot, “parecida com a dos índios brasileiros e sem costura, como uma fralda de criança”, descrevia a revista Veja. Ainda mais importante era a adesão ao topless – agora, o termo já era bastante usado -, praticamente liberado, ao menos em Ipanema, no Rio de Janeiro. “Em outras capitais, continuam as tentativas solitárias, e geralmente malsucedidas de transformar o topless em traje rotineiro”. Na praia de Tramandaí, ao norte de Porto Alegre, certa Lorena Borges, de 18 anos, bem que tentou adotar a moda. Sua exibição não duraria 3 minutos antes de ser cercada por uma roda de homens e ouvir aplausos e palavrões. “O homem gaúcho é muito machista”, diria a moça. A polícia local também era contra a prática, tanto que o delegado Avalmor Otávio Belina, foi apelidado na cidade de “Dr. de Millus”.

Mesmo sendo “o toples uma depravação”, segundo o Cardeal dom Vicente Scherer, a prática ia abrindo caminho, com extrema dificuldade, por todo o Brasil. Em Recife, uma estudante de 20 anos, teve de entrar na justiça com um habeas corpus para poder desfilar impunemente pelas praias sem sutiã. O argumento do seu advogado foi o seguinte: “A aplicação do sun bathing – banho de sol – muito difundida, recomenda na terapêutica cutânea o aproveitamento dos raios solares uniformemente ao longo do corpo”. Ela conseguiu o habeas corpus, mas, na praia de Boa Viagem, se viu cercada de vendedores de picolé, chamada de exibida e coberta de areia ao som de “Joga pedra na Geni…”, música de Chico Buarque referente a uma prostituta: “Ela é feita pra apanhar. Ela é boa de cuspir. Ela dá prá qualquer um…”

As tentativas de institucionalização da prática foram “sumária e estupidamente rechaçadas por indignados e ofendidos banhistas conservadores”, reagiam alguns jornais. Em fevereiro de 1980, na praia de Ipanema, um episódio quase terminou em linchamento, quando certa turista gaúcha tirou a parte superior do biquíni e começou a desfilar acompanhada por um amigo. Como já havia acontecera antes, com outras ousadas banhistas, uma “multidão excitada” se formou ao redor do casal e, em pouco tempo, uma centena de pessoas, aos gritos de “Geni” corria atrás deles atirando areia e latas de refrigerante vazias. Revistas e jornais bombardearam seus leitores com imagens. Para acabar com a confusão, a Polícia Militar teve que intervir com cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo. Em outro caso, também em Ipanema, um vendedor de melancia, sacou o facão para defender outra turista, desta vez, francesa, que estava de topless e foi cercada por uma multidão “dos que queriam mais e dos que não queriam nada”.

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Para o Ministério da Justiça o topless era apenas mais um sinal da “onda de permissividade” pela qual o país passava. Outros sintomas podiam ser observados nas livrarias e bancas de jornal, onde podiam ser comprados “os mais requintados exemplares de pornografia escandinava”, nos cinemas onde se projetavam pornochanchadas e na TV onde a sexóloga Marta Suplicy respondia a questões espinhosas: “como ter mais prazer?”, por exemplo. Ao fundo a voz macia de Rita Lee: “nem só de cama vive a mulher…”.

Para o CNBB, o que se pretendia era “banir a noção do pecado” e “em nome da liberdade apregoar-se a licenciosidade dos costumes”. Para o ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, se antes tudo era proibido pela censura, agora se caía no “excesso oposto”. Parecia-lhe que “em pleno verão da abertura, a própria sociedade está coibindo os excessos provocados pela liberação dos costumes”. O ministro julgava salutares manifestações com aquelas ocorridas na praia de Ipanema, mas, prometia intervir se os excessos se tornassem intoleráveis.

De maneira geral, as autoridades se mostravam flexíveis a esse respeito. O Secretário da Segurança, por exemplo, havia resolvido liberar o topless durante o carnaval. “Se as mulheres que o usarem não atrapalharem o andamento do carnaval não haverá problemas”, dizia. A Escola de Samba União da Ilha já tinha até divulgado que apresentaria um casal fantasiado de Adão e Eva no seu desfile. Não decidira, porém, se Eva estaria de topless.

A resistência só não foi forte o bastante para deter o uso de minúsculos pedaços de trapo. Dez anos depois desta “guerra de pelados”, os modelos asa delta, bumerangue e fio dental aterrissaram nas praias. E, tudo indica que, hoje, as usuárias não seguem o alerta disparado em 85: “Apesar do sucesso, o novo biquíni não serve para todo mundo. É indispensável ter belas pernas e nádegas firmes para usá-lo. Em um corpo malfeito ele piora a situação”.

Nesta guerra, perdeu o pudor e ganhou a nudez. Ou melhor, venceu a crescente insensibilidade frente aos corpos desnudos. Afinal, as mulheres estavam mais acessíveis do que nunca. A sedução perdia seu sentido, tornando-se quase obsoleta. Homens como Nelson Rodrigues, que nela viam uma forma de peitar a proteção e o controle sexual sobre as fêmeas, tinham mesmo que se chocar.

– Mary del Priore (“Histórias Íntimas”).

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Biquínis: escandalizando os conservadores. 

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