A “santa” e as mulheres da rua

A partir de finais do século XVII, uma evolução não linear, feita de constrangimentos
e rupturas, teria promovido a incubação de uma moral conjugal sóbria e
vigilante, no que tocasse à vida familiar. Nesse longo processo, as fronteiras entre o domínio do público e aquele do privado ficaram mais nítidas, favorecendo a que os papéis desempenhados nestes diferentes territórios se tomassem mais visíveis. Ao confinar ou ceder às mulheres o espaço da casa, a Igreja apostava no sucesso do projeto tridentino, mas cedia-lhes também um espaço privilegiado para o comando de afetos, solidariedades, estratégias e poderes informais, que acabaram por interferir na realização desse mesmo projeto normativo.

Na Colônia, onde a história da vida familiar teve sua especificidade, a ideia de privacidade poderia traduzir-se pela relação que as mulheres tinham com sua própria casa, com a religiosidade doméstica, com usos e costumes relativos ao seu próprio corpo, mas sobretudo com a relação que mantinham com sua prole.

A maternidade, espécie de coração a bater no centro da vida doméstica, era
um nicho de apoio para as solidariedades femininas entre tantas adversidades da
vida colonial; mas era também o foco de resistência contra as injunções do Estado
moderno, da Igreja da Reforma, da ciência, dos homens enfim… Apenas domesticando
as mães que viviam concubinadas, amancebadas, amasiadas, prostituídas
até então, poder-se-ia assegurar o estabelecimento de uma sociedade familiar nos
moldes vigentes na tradição europeia.

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É a Igreja quem primeiro traz e empurra este projeto goela abaixo das populações
coloniais. Ela não tinha necessidade de ter controle direto da sociedade
dominada para exercer essa transfusão de valores: bastava que estivesse presente,
e pela sua proximidade, pela ameaça, ou pelo vigor do seu prestígio inoculava seus
propósitos à vida comunitária. A ciência médica fez-lhe eco, aderindo ao projeto
de criar um papel para as mulheres participarem, ou melhor, servirem à conquista
ultramarina.

Ambas não percebem que a construção desta santa-mãezinha, tão cuidadosamente
elaborada para se distinguirem as mulheres ‘certas’ e normatizadas das
‘erradas’, acaba por transformar-se numa fenomenal possibilidade de revanche.
Não é à toa que, até bem recentemente, os homens da Terra de Santa Cruz – a que
hoje se chama Brasil – entronizaram e reverenciaram no cerne de suas casas a santa-
mãezinha. Figura poderosa tornada estereótipo, esta mulher – sendo branca, negra
ou mulata, pobre ou rica – detém um enorme patrimônio de poderes informais. O
seu avesso, a ‘mulher da rua’, faz o contraponto necessário para lembrar que uma
não existe sem a outra, e que, se por tanto tempo um certo processo de normatização
conseguiu distingui-las nos menores detalhes, o ideal é que se reunissem os
defeitos e qualidades de ambos os papéis num só. – Mary del Priore (“Ao Sul do Corpo”).

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pierinodelvaga

“A Sagrada Família”, de Perino del Vaga. 

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