Lançamento: “Na Cor da Pele, o Negro”

Desde os primeiros escritos sobre a Terra de Santa Cruz, nos idos do século XVI, a questão das misturas entre portugueses, indígenas e africanos era um desafio concreto que assombrava religiosos e leigos. As mestiçagens constituíram-se em um fenômeno provocado pela mundialização, pela expansão das navegações ibéricas marcadas por imprevisibilidades e movimentos complexos que geraram uma experiência ímpar, vivida por todos os que dela participaram, inclusive pelos próprios mestiços, os filhos das dinâmicas provocadas pelos (des)encontros desses mundos. Todos tiveram que reaprender a partir das analogias possíveis e reinventar novas formas de identidade e convívio. 

Oficialmente, no século XIX, no nascedouro de nossa historiografia, Karl von Martius, citado por Schwarcz (1993), procurou enfrentar a questão propondo que só seria possível o entendimento do Brasil se abordada a sua história a partir da mestiçagem: 

“qualquer que se encarregue de escrever a História do Brasil [] jamais deverá perder de vista quais os elementos que ahi concorrerão para o desenvolvimento do homem [] tendo convergido de modo muito particular as três raças”. 

Essa questão apresenta-se atualíssima, pois é um problema que vem sendo investigado com muito afinco pelas ciências sociais no Brasil nos últimos 30 anos. Só em curtos períodos de tempo foi que a mestiçagem/miscigenação saiu da pauta de interesse dos historiadores, se é que saiu algum dia. Assim, este livro de Gian Carlo de Melo Silva chega em boa hora. Fruto de pesquisa original em fontes paroquiais da Vila do Recife, com análise perspicaz e acurada, está sintonizado com o que há de mais inovador na produção acadêmica contemporânea, com a qual dialoga constantemente. O Recife, aqui, não é só um lugar, pois esta não é uma obra de história regional nos moldes tradicionais, uma vez que segue um modelo hoje caro à historiografia, que partindo do local, seja no Norte ou no Sul do Brasil colonial, investiga as conexões e articulações com um todo muito mais amplo da história. Tudo é História do Brasil, Atlântica e, ao mesmo tempo, História Regional ou local. A investigação feita nos arquivos locais nos deixa entrever que as “qualidades” como pardo, preto, negro mulato, cabra, na Capitania de Pernambuco, não eram dadas, mas aconteciam, e assim apresentaram nuances, especificidades diferentes do restante do Brasil. 

As fontes depositadas em arquivos pernambucanos para o período em tela são escassas, danificadas, e em muitas situações inacessíveis. Quem conhece os arquivos pernambucanos irá reconhecer aqui um dos grandes méritos deste trabalho, pois nada foi facilmente acessado. Vencida essa ditadura epistemológica do acesso às fontes, percebe-se que o estudo do acervo da Matriz do Santíssimo Sacramento do Recife permite vislumbrar um perfil de cores e hierarquias de inserção social. Este estudo confirma a ideia de que, quanto mais longe da escravidão, maiores as possibilidades das pessoas de cor alcançarem algum benefício financeiro ou social. 

Assim, a qualidade de pardo seria ambicionada por amenizar o estigma de mulato. Estigma grave, definido e impresso havia muito tempo. O ser pardo em Pernambuco foi consagrado como condição mais que perfeita, em 1745, pelo frei franciscano Antônio de Santa Maria Jaboatão, em sermão proferido à altura da entronização de um santo pardo, São Gonçalo Garcia, pela Irmandade do Livramento. A confraria torna-se o lugar de destaque para a organização de uma parcela da população que passa, assim, a se reconhecer como parda. Esse movimento é apreendido pelo trabalho do historiador Gian Carlo de Melo Silva através dos assentos de batismo da Matriz do Santíssimo Sacramento do Recife, cujos livros demonstram que, naquele momento, podia ser vantajoso ser reconhecido como pardo. A questão, no contexto de uma pesquisa primária inédita e de discussão conceitual instigante, enriquece a historiografia pertinente ao tema. É isso que oferece este livro, bem-vindo e necessário. 

Suely C. Cordeiro de Almeida  & Marcus J. M. de Carvalho.

capa

“Na Cor da Pele, o Negro”, de Gian Carlo de Melo Silva

 

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