Ser criança nos tempos imperiais: obedecer e trabalhar

    No século XIX, com a implementação da indústria no Brasil, o trabalho de jovens, transformados em “proletários”, era apresentado como “ajuda econômica” que vinha reforçar o orçamento doméstico. A fábrica era vista por patrões e pais de família como uma escola, um lugar que podia formar o cidadão do futuro. Embora, nesta mesma época, uma lei proibisse o trabalho de adolescentes entre 25 e 16 anos, a legislação só se consolidou com as Leis do Trabalho, em 1943. Enquanto isto, milhares de rapazes e também de moças, ficaram sem espaço para viver os rituais da adolescência, pois a passaram entre teares e máquinas.

     Saber ler e escrever não eram habilidades estimuladas para moças pobres, obrigando-as a realizar o trabalho doméstico e a sonhar com o casamento e a maternidade como única via de passagem para o mundo adulto. A infância nestes tempos fabricava crianças tristes, verdadeiras miniaturas de adultos na forma de vestir e se comportar. Eram os candidatos ao fraque e à calvície precoce, como dizia Gilberto Freyre, pioneiro em descrever a falta de brinquedos, de imaginação, de travessuras de crianças e jovens brasileiros.

    Obedecer e trabalhar era o pão cotidiano da maioria das crianças e adolescentes no século XIX. Entre as crianças escravas, o trabalho não cessou até a Abolição. Lembra a historiadora Heloísa Maria Teixeira que, no período de transição para a mão de obra livre, muitos senhores aproveitaram a Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871, para fazer os filhos de escravas trabalhar até os 21 anos. Frente à conjuntura adversa ao trabalho escravo, as crianças poderiam representar uma boa alternativa. E muitas vezes, cometeram-se ações ilegais para garantir a mão-de-obra infantil como a compra de crianças isoladas, mesmo existindo uma legislação proibitiva a partir de 1869; a valorização dos serviços dos ingênuos; e até mesmo furto de crianças. Não se cumpriam as leis de 1869 e a Lei do Ventre Livre de 1871, “que proibiam a separação das crianças escravizadas − menores de 15 anos na primeira data e menores de 12 anos na segunda − de suas mães

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     Em muitas ocasiões, especialmente após a abolição, a tutela representou um meio de assegurar a “posse” das crianças pobres – principalmente, as descendentes da escravidão – com a finalidade de servirem como trabalhadores aos tutores. Os tutelados eram crianças desamparadas, precisando de uma pessoa idônea que lhes fornecesse o bastante para a sobrevivência: casa, alimentação, vestimenta e aprendizado de um ofício para o qual tivessem inclinação. A falta de recursos financeiros fazia com que famílias de ex-cativos não encontrassem alternativas senão a transferência da tutela de seus filhos a quem tivesse condições de sustentá-los.

     Ao focar a cidade de Mariana, entre 1850 e 1900, Teixeira conseguiu a descrição dos serviços para 147 crianças. A principal atividade descrita era a de roceiro, muitas vezes eram classificadas como ajudantes de lavoura. Outras funções adequadas a pouca idade dos escravos apareceram: pajem, pastor, candieiro ou guia de carros de bois, servente, copeiro. Crianças com menos de sete anos não foram descritas com atividades.

     Por sua vez, a historiadora Kátia Mattoso estudando a questão na Bahia das últimas décadas da escravidão declara que:

 “o período na vida da criança que vai dos três aos sete para oito anos é um período de iniciação aos comportamentos sociais no seu relacionamento com a sociedade dos senhores, mas também no seu relacionamento com a comunidade escrava. É, sem dúvida, nesta tenra idade que o seu senhor vai formar ideia sobre as capacidades e o caráter da criança. É nessa idade também, que a criança começará a perceber o que são os castigos corporais, que adentram pela vida adulta (…). Por volta dos sete para os oito anos, a criança não terá mais o direito de acompanhar sua mãe brincando; ela deverá prestar serviços regulares para fazer jus às despesas que ocasiona a seu senhor, ou até mesmo, à própria mãe, se esta trabalha de ganho e reside fora da casa de seu dono. (…) A idade de sua vida que vai dos sete aos doze anos, não é mais uma idade de infância, porque já sua força de trabalho é explorada ao máximo (…). Mesmo se seu rendimento é menor, ele é escravo à part entière, e não mais criança”.

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    Ao estudar os viajantes estrangeiros, Maria Lúcia de Barros Mott também percebeu os sete anos como o momento quando as crianças escravas passavam a trabalhar no serviço mais regular. “Deixavam para trás as últimas ‘regalias’ infantis, aqueles que viviam na casa do senhor passavam a desempenhar funções específicas para sua idade ou já eram treinados para funções que desempenhariam vida afora”. Já Renato Pinto Venâncio, ao focar a região metalúrgica-mantiqueira, no século XIX, aponta o interesse pela mão-de-obra infantil devido ao fato desta região produzir larga gama de produtos de artesanato em domicílios, cabendo aos pais cativos ensinar às crianças a fabricação artesanal.

    No Nordeste, meninas como a futura escritora Amélia Beviláqua, “batiam bilros” em almofadas, ouviam estórias contadas por “beatas” ou “narrativas de mistérios de outras vidas”, e aprendiam a ler sob a férula da palmatória do professor particular. Já meninos da família Cavalcanti empinavam papagaios de papel: “tapiocas” tristonhas que não subiam tão alto quanto os “baldes” ou os “gamelos” dos moleques da rua. Ou pescavam nos viveiros dos Afogados ou de Jiquiá, camorins, carapebas e curimãs. Liam o “Dicionário Popular”, de Pinheiro Chagas e os romancistas franceses Eugene Sue e Alexandre Dumas.

    Já o relato de férias de Pedrinho, filho do rico cafeicultor na região de Bananal, Pedro Luiz Pereira de Souza, revela as férias de jovens de elite: passeios a cavalo pela fazenda, refeições abundantes, muitos “bolos e biscoitos”, caminhadas ao luar, pic-nics, mesinhas de jogo, excursões pela serra da Cambira, no alto da Bocaína, prosas animadas e anedotas. O ponto alto era o Carnaval, onde os jovens se molhavam uns aos outros!

  • PRIORE, Mary del. “Histórias da Gente Brasileira: Império” (vol.2), editora LeYa, 2016.
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