“Não castigar os excessos que eles (os escravos) cometem seria culpa não leve, porém estes se hão de averiguar antes, para não castigar os inocentes e, se hão de ouvir os delatados e, convencidos, castigar-se-ão com açoutes moderados ou com os meter em uma corrente de ferro por algum tempo ou tronco. Castigar com ímpeto, com ânimo vingativo, por mão própria e com instrumentos terríveis e chegar talvez aos pobres com fogo ou lacre ardente, ou marcá-los na cara, não seria para se sofrer entre bárbaros, muito menos entre cristãos católicos”,- Cultura e Opulência do Brasil, de André João Antonil (pseudônimo do jesuíta João Antônio Andreoni).
No trecho acima, Andreoni, no início do século XVIII, pedia aos senhores que tivessem moderação e não castigassem seus escravos com “ânimo vingativo”. O religioso não era contra as punições físicas, mas recomendava que se evitasse a crueldade extrema e que se tomasse muito cuidado para não castigar os inocentes. Sabemos que suas orientações nem sempre eram seguidas, e que os cativos passavam por todos os tipos de martírios. O regime escravista é, por definição, violento. A preocupação do jesuíta italiano, sempre focado em questões práticas, nos dá uma ideia de como era a rotina dos engenhos. E ele acrescentava:
“Aos feitores de nenhuma maneira se deve consentir o dar couces, principalmente na barriga de mulheres que andam pejadas (grávidas), nem dar com pau nos escravos (…). Amarrar e castigar com cipó até correr sangue e meter no tronco, ou em uma corrente por meses (…) isto de nenhum modo se há de sofrer”.
O Brasil nasceu do embate de culturas. A escravização de índios e africanos marcou o processo de colonização. Bem como as guerras para expulsar os invasores franceses e holandeses, e a destruição dos focos de rebelião que ameaçavam a Coroa Portuguesa. Os participantes da Inconfidência Mineira (1789) e da Conjuração Baiana (1798) tiveram um destino bastante cruel. No levante mineiro, somente Tiradentes foi condenado à pena última, o que significava ser enforcado e esquartejado, por crime de lesa-majestade. Na Conjuração Baiana, foram quatro os condenados ao mesmo suplício. Os corpos em pedaços eram exibidos em praça pública para servirem de exemplo.
Submetidos às mais degradantes condições, houve momentos em que os escravos reagiram, em uma explosão de violência. Um exemplo foi a Revolta de Carrancas, em 1833, nas Minas Gerais, quando nove integrantes da poderosa família Junqueira foram assassinados pelos escravos da fazenda. Houve indícios de que as mulheres sofreram violência sexual. Os cativos usaram paus, foices, machados e armas de fogo para matar os fazendeiros. Capturados, os rebeldes foram exemplarmente punidos, sendo que 16 deles foram condenados à pena de morte por enforcamento e executados em praça pública. Foi uma das maiores condenações coletivas à pena de morte na história do Brasil Império. Na Revolta dos Malês (1835), houve um número semelhante de condenados à morte, mas apenas quatro escravos foram fuzilados, o restante teve a sentença convertida para açoites ou galés em segundo julgamento.
Os desvios morais e as heresias também acarretavam castigos violentos. Os padres capuchinhos executaram um índio tupinambá, no início do século XVII, no Maranhão, amarrando-o na boca de um canhão. O disparo da arma estraçalhou-lhe o corpo. O motivo foi a prática do pecado “nefando” ou sodomia, nos conta o antropólogo Luís Mott. Os tribunais do Santo Ofício, em suas visitas ao Brasil, condenaram muitos pecadores a serem chicoteados em público por suas faltas. Havia também as penas de sequestro de bens, degredo e o envio do acusado a Portugal para julgamento.
A violência, no entanto, não vinha apenas do Estado e da Igreja. Nos tempos coloniais, as desavenças costumavam acabar em morte. M. De La Flotte, um viajante francês que esteve no Rio de Janeiro em 1757, relatou que os colonos só saíam às ruas, munidos de adagas. “Os assassinatos são frequentes e permanecem quase sempre impunes”, disse. Percebemos que já havia uma tendência de se resolver os problemas individualmente, devido à desconfiança em relação à Justiça.
Era comum também a violência entre casais – e infelizmente, continua a ser. Na legislação lusa e na sociedade colonial, a defesa da honra perante o adultério feminino comprovado encontrava apoio nas leis. O marido traído que matasse a adúltera não sofria qualquer punição. Segundo as Ordenações Filipinas: “Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela, como o adúltero, salvo se o marido for peão, e o adúltero, fidalgo, desembargador, ou pessoa de maior qualidade”. No caso das mulheres, a condição social da adúltera não tinha importância.
Enfim, poderíamos continuar a relatar inúmeras situações em que a violência se fez presente em nossa história. O Estado sempre atuou com mão de ferro na repressão de rebeliões e movimentos populares. A Revolta de Canudos é um dos exemplos em que isso ocorreu, mas existem muitos outros. Houve também períodos em que a tortura e a ausência de direitos civis se tornaram política oficial, como no Estado Novo (1937-1945) e na ditadura militar (1964-1985).
Hoje, somos bombardeados todos os dias com notícias de assassinatos, estupros, assaltos, agressões e sequestros. Brigas de bar ou de trânsito podem terminar de forma trágica. Maridos e amantes tiram a vida de suas companheiras e vice-versa. Mães e pais matam e abusam de seus filhos. Linchamentos são apoiados por parte da população. Até os jogos de futebol podem ter como saldo espancamento e morte de torcedores. A violência policial já se tornou rotina. Professores, estudantes, grevistas em geral são tratados com cassetetes e balas de borracha. Ninguém mais consegue discutir, nem mesmo virtualmente, sem xingamentos, palavrões e ofensas.
O que fazer? Será que somos resultado de uma “cultura da violência”? E, se formos, não há como mudar isso? Gostamos de ter uma imagem positiva de nós mesmos, de imaginar que vivemos em uma democracia racial, que somos um povo alegre e pacífico. Muita gente gosta de acreditar que a violência é característica dos tempos atuais, e que antigamente vivíamos em harmonia. Como vimos, a História nos ensina que fomos forjados na violência e no conflito. Talvez, aceitar isso seja o primeiro passo para mudarmos…
Texto de Márcia Pinna Raspanti.
Tiradentes retratado por Pedro Américo.
“Loja de Sapateiro”, de Debret.
Olá gostei do artigo, aguardo mais dicas preciosas como esta. Convido você a visualizar meu site.
Excelente, mas ocorreu um esquecimento: a Revolução dos Padres (ou Revolução Pernambucana) de 1817, e o fuzilamento de 4 dos seus ideólogos, entre eles Frei Caneca. Afinal, foi o único dos movimentos separatistas do Brasil Colonial que conseguiu ultrapassar a fase das conspirações para efetivar os ideais revolucionários através da real tomada do poder.
Olá, José. Sim, haveria outros exemplos importantes, como a Revolução Pernambucana, como você citou. Mas, como disse no texto, não teria como falar de todos, inclusive porque um texto para blog tem suas limitações de espaço. Obrigada!
Excelente texto, Márcia. Parabéns!
Está mesmo na hora de assumir o nosso passado de violência, para que possamos entender a violência presente, e procurar saídas para o futuro. Chega dessa alegria artificial, dessa cordialidade “para inglês ver” que mascara muito da nossa violência, racismo e misoginia.
Um grande abraço,
Maurício.
Verdade, precisamos começar a enfrentar nosso passado. Obrigada, Maurício.