O direito de ser “feia”

Nos anos 1980, Carmem da Silva escreveu um artigo para Cláudia, “A arte de não ser bela”. Nele, dizia: “Há pessoas que nascem bonitas: já aos dois ou três anos de idade, seus traços encerram uma inequívoca promessa de beleza. Outras nada têm de especialmente distintivo: podem vir a ser bonitas, medíocres ou feias”. Invocando as que, ao se olhar no espelho, reconheciam que “não eram lá essas coisas”, pergunta: “Não sou bonita e daí”? A preocupação com a feiura é antiga entre as mulheres. Produtos variados, ênfase na coquetterie, no charme e nos esportes foram tentativas de ultrapassar o problema.

No século XIX, só contava a beleza natural, livre de artifícios. No conto Diana, Machado de Assis revela o desencanto do homem que se vê cara a cara com a amada sem maquiagem: “Luís soltou um grito e recuou […] Era que o sonho que durante dias criara e idealizara desfizera-se ali todo e de uma vez. Diana, a jovem, a bela, a sedutora mulher que tanto impressionara o advogado, era amarela, sem beleza, sem mocidade, sem encanto algum. Todos os encantos eram artifícios comprados e aplicados diariamente com uma paciência de feia pretensiosa”.

Pobres feias! Não tinham sequer o direito de se retocar. O diagnóstico consolador, dizia Carmem, é que “quem vê cara não vê coração”. E listava as belas infelizes: Marilyn Monroe, Brigitte Bardot e Elizabeth Taylor, cujas vidas, apesar do rosto perfeito, foram desperdiçadas. A insatisfação, insistia a jornalista, era o pior defeito. Tomar como referência padrões inatingíveis, depreciar os próprios valores, atribuir a solidão ao desgracioso nariz ou às pernas tortas só reforçavam o círculo vicioso de frustrações. Tudo bem se cuidar, tratar de melhorar o aspecto, ser faceira, mas sempre no limite do natural, admoestava. Importante mesmo era “a beleza da alma”; sim, adquirir confiança em si e “amar”: amar o mundo, as pessoas, estar aberta ao outro. “Dotada da capacidade de amar, a pessoa irradia calor vital, um clima estimulante e acolhedor que chama a simpatia, a amizade, o carinho, a dedicação alheia”.

Válido, o conselho de Carmem não dobrou as exigências de que as mulheres se aproximem de determinados ideais, que, apesar de mundializados, são variáveis no tempo e no espaço; porém, que seguem existindo e são ditatoriais. Com eles, revistas, telas e outdoors bombardeiam as mulheres; são rostos “maxfactorizados”, diz o filósofo Edgard Morin. O excesso de cirurgias plásticas os despersonalizam para superpersonalizá-los, até que encontrem a fixidez de máscaras.

A feiura é uma certeza: “fui bela por um dia, com dezessete anos. Só o pai de uma amiga reconheceu e me disse. Fora disso, fui feia toda a vida”, diz um personagem de romance. Por outro lado, por uma dessas artimanhas do destino biológico, a beleza tende a se extinguir com o tempo, caminhando ela também para a feiura. Consolo? A feia é amada por ela mesma, e não por seus belos olhos.

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A palavra feiura, em português, vem do latim foeditas, que quer dizer, ao mesmo tempo, sujeira e vergonha. No francês, feiura é laideur, que vem de laedere, que significa ferir. Já no alemão usa-se hässlichkeit, derivado de hass, ou ódio. E, em japonês, feio, ou minikui, significa “difícil de ver”. Em uma sociedade na qual a imagem tem muito peso e a maior parte das mulheres considera que o corpo é uma mercadoria e a vitrine de suas qualidades, a televisão faz estragos definitivos. Quem desabafa é a grande atriz e diretora de arte Cristina Mutarelli:

 “A primeira imagem que me vem à cabeça quando pensamos no tema “a mulher na TV” é a da mulher loira, alta, bonita e magra. Essa imagem é muito forte, e aí está a Xuxa que não podemos desvincular dessa imagem. Mas antes da Xuxa, já havia a imagem americana de mulher, protagonista da televisão, das novelas e dos programas. Eu fico pensando não só na imagem dessa mulher, mas no seu comportamento. No programa matinal da Xuxa, ela falava para as pessoas tomarem café da manhã. Ela dizia: “Ah! Você é criança, você precisa crescer”! Vinha então um garçom e trazia um café maravilhoso, com sucos, geleias, queijos. Ela ia comendo e as pessoas iam ficando cada vez mais “verdes”. E ela dizia: “Isso você precisa ter na sua geladeira, você tem que pedir para a mamãe”. Era horrível. Mas esta imagem é tão forte que, quando eu quis ser atriz, logo desisti porque pensei: uma atriz tem que ser loura, alta, bonita e magra. Aí eu olhei para mim e falei: eu não sou nada disso. Desisti então de ser atriz”.

Cristina entrou em cena com o grupo Pod Minoga, que, com o Asdrúbal Trouxe o Trombone, de Regina Casé, fazia a crítica dessa imagem: “Eu fazia uma miss. A nossa proposta era criticar tudo o que era veiculado como imagem dominante”. E prossegue:

“A mulher, na televisão, ou é bonita ou é cômica. É como a televisão absorve a imagem da mulher. E, às vezes, essa comicidade serve até para criticar a própria condição da mulher que não é bonita. A comicidade está na mulher não ser bonita, não ter o padrão de beleza. Quando o Sílvio de Abreu me convidou para fazer a novela Deus nos acuda, ele me perguntou se eu estava gorda e eu respondi que sim, um pouco. Então ele me disse: Emagrece porque você vai fazer novela e assim não dá”.

Alvo de comentários de mau gosto de colegas, do tipo “Sai gorda, eu não gosto de mulher gorda”, Cristina sublinha que as mulheres na telinha são esquálidas, pois há uma teoria de que as linhas horizontais da TV engordam. A beleza é tão importante para o sucesso da novela que “muitas modelos são atrizes, não importa se têm talento ou não. Tem uma escolinha na Globo que ensina a falar meia hora e pronto. E já aparecem, já são lindas e pronto: já botam biquíni”. Quanto às atrizes negras, Cristina lembra que seu papel, ao final dos anos 1990, era sempre de escrava ou empregada doméstica.

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A realidade bate de frente com a imagem da TV. As brasileiras são gordas. Os números alarmam os departamentos de Saúde Pública: 51% da população nacional tem sobrepeso, sendo mais da metade desse universo constituído por mulheres. Destas, em 2009, 48% acima dos vintes anos estavam acima do peso e 16% foram consideradas obesas; mais de 4% – o dobro dos homens – como “obesa mórbida”. Além de gordas, são mestiças, morenas, de cabelos crespos e negros. Nada têm a ver com a Barbie da telinha. O impacto de apresentadoras de programas infantis, todas louras, altas e magras, na massa de meninas mulatas e negras é perverso. Elas são vítimas do que a psicanalista Maria Rita Kehl chamou de “o Grande Outro: a mídia sem rosto”.

Os gordos, explica o psicanalista Charles Feitosa, são os “novos feios”. São tratados como desviantes, fruto de “maus costumes”. Disse-lhe uma paciente: “Meus amigos não dizem na minha cara, mas já deixaram escapar diversas vezes a repulsa que sentem ao verem pessoas gordas na praia”. O riso, modo de agressividade expresso na forma de escárnio, destitui a gorda de qualquer valor; dessexualiza o corpo: “Quando uma gordinha se aventura a entrar numa boate ou andar pela rua com uma roupa sensual, tem que fingir que não percebe os risinhos, os cochichos, ser alvo das pessoas apontando na rua como se estivessem numa apresentação de circo, onde são apresentadas coisas exóticas… Se não estivesse acostumada a fingir que não percebo a reação das pessoas, viveria trancafiada dentro de casa e não sairia à rua para nada”, confessou-lhe outra paciente.

De fato, muitas sentem vergonha de celulites e estrias, inclusive as mais jovens e magras, e, por isso, não usam shorts nem biquínis. Muitas só fazem sexo de luz apagada, e outras, ainda, passam a vida reféns de regimes malucos. Se no passado gordura era formosura e magreza, sinônimo de doença, tudo mudou. Antítese do belo, a feiura parece ser algo a ser melhorado ou eliminado em nossa sociedade. Que o diga o professor de ginástica, quando interpela a aluna: “Vai, gordinha, que você chega lá”.  O que diria se ele ouvisse a bela cantora Gaby Amarantos: “Meu peso não me incomoda. Isso só incomoda aos outros”?

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E Feitosa conclui:

“Beleza e feiura não é questão de gosto de cada um. Está na época, no momento em que se vive. Essa super preocupação com as transformações do corpo para se adequar a certos padrões refletem um contexto, um momento, em que a técnica da medicina está dando condições para a gente conseguir produzir esse corpo idealizado, perfeito, e isso não é questão de uma pessoa específica, e sim de um momento cultural. Eu acredito que isso tem a ver com certa dificuldade do ser humano de aceitar a sua própria finitude e que tem um corpo transitório, que envelhece, se modifica e morre. Já passamos por alguns momentos da história em que as pessoas conviviam melhor com essa fase da vida”.

Nos Estados Unidos, uma estudante obesa foi expulsa de uma escola de enfermagem por “dar mau exemplo aos pacientes”. Empregadas no comércio são despedidas por ganhar peso ou não se maquiar. Estudos revelam que pessoas mestiças ou não brancas são percebidas como “feias” e, por consequência, consideradas “menos competentes, menos inteligentes e menos dignas de confiança”. Esse tipo de discriminação encobre outras, de ordem racista, e o estereótipo anglo-europeu pesa fortemente na construção dos ideais de beleza. Estados como o de Michigan e seis cidades norte-americanas, entre as quais San Francisco, já têm leis antidiscriminatórias. Suas vítimas recorrem cada vez mais aos tribunais.

Pesquisas revelam também que investimentos na melhora do aspecto físico superam os que se direcionam a um diploma universitário. Os belos ganham quase 10% a mais do que os feios, contrariando a premissa de que as aparências não importam. O mais surpreendente é que opiniões, em diferentes partes do mundo, coincidem sobre quem é ou não atraente. Mulheres menos atraentes ganham 6% menos nos Estados Unidos; 11% menos no Reino Unido; e 31% menos em Xangai. Estatura maior acompanha aumento de renda e quem tem dentes melhores ganha mais!

E pensar que, nos anos 1960, o grito de liberdade das mulheres era: “Nosso corpo nos pertence”! – Mary del Priore

 

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“Mulher ao espelho”, de Ticiano.

4 Comentários

  1. Charles Feitosa
  2. Marília da Rocha
  3. sonia
  4. albanise

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