Finados: o medo da morte no Brasil Colônia

               Na Colônia, embora as vidas fossem curtas, a definição da morte era longa. Dela dizia o dicionarista Bluteau:

 “Ser a separação da alma e do corpo no composto humano e fim da vida ou cessação dos movimentos dos espíritos e sangue nos brutos. Pintaram os egípcios a morte em figura de moça com arco e flecha nas mãos, olhos vendados, asas nos pés, sem orelhas. Moça a fizeram porque se bem a todas as idades faz estragos, principalmente atira a mocidade […] no véu dos olhos se vê que a morte não distingue as pessoas, mas a grandes e pequenos, bons e maus, igualmente leva. Mostram as asas nos pés a velocidade com que a todas as partes se acha tirando vidas; a falta de orelhas é demonstração de que não ouve a ninguém, á razões e gemidos sempre surda. Entrou no mundo a morte para castigo do pecado, mas não deixa de ser útil ao mundo, porque se não fora o medo da morte, seria imortal a malícia humana”.

             Medo de morrer? Não. Medo de não se preparar para a morte. De não estar pronto e por isso, não aceder ao paraíso. E como se aparelhar? De início por uma disposição testamentária que contava com o dedo da Igreja: a legislação canônica favorecia os legados ad pias causas. Quem dispunha de seus bens sem contemplar a instituição, se arriscava a não receber a extrema-unção e não ser enterrado em solo sagrado. E o medo de se perder nas chamas do Inferno fazia com que os indivíduos fizessem o possível para deixar esmolas ou encomendar missas em benefício de sua alma, sempre pecadora. Para redimi-la, se derramavam doações e pagamentos, óbolos e espórtulas.

             Quem habitava a Colônia, sabia a morte “coisa muito ordinária, natural aos homens”. No dizer simplório de um desses homens, “como ser humano, sou mortal e posso morrer”, ou no entendimento poético de outro, “somos, afinal, de fino metal e por não saber da morte nem da vida…”. O importante era “aparelhar-se para bem morrer enquanto são, rijo, valente e de pé”. Não se esquecendo nunca, no momento de testar, de dizer que se estava “com todo o seu juízo e siso e comprido entendimento com todos os seus cinco sentidos perfeitos, potências, memória e entendimento corporal, que Nosso Senhor teve por bem de lhe dar para com ele se reger e governar como é sua vontade”.

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           Diz Alcântara Machado, que a grande maioria dos moradores da capitânia de São Paulo fazia testamento. Faziam-no desde indigentes como Maria Leite, “tão pobre e tão carregada de filhos”, que pedia uma cova pelo amor de Deus no convento de São Francisco e implorava “pelo amor de Deus” que seu caixão fosse acompanhando pelo vigário e mais três sacerdotes até a tumba da Misericórdia”, até gente muito abastada ou viajante. O bandeirante Antônio Rodrigues de Miranda testou “por estar de caminho para o sertão buscar meu remédio e por ser mortal e não saber a hora que hei de dar conta da minha vida”. Precavidos, também, certo Pedro Madeira, “por não saber da morte nem da vida nesta viagem que vou fazer aos Guaianazes”, ou, Francisco Ribeiro: “se Nosso Senhor fizer de mim alguma coisa nesta viagem que hora faço adonde Deus me guiar”.

           O motivo que levava nossos antepassados a fazer testamento estava sempre declarado no proêmio dos documentos. “Temendo-me da morte e desejando por minha alma no verdadeiro caminho da salvação” ou “considerando quão incerta é a hora da morte e a estreita conta que devo dar ao meu Redentor e Criador”. Tinha os que se deixassem mover por inspiração piedosa de “pôr a alma bem com o Senhor Jesus Cristo”. Ou, como esclarecia certa Isabel Sobrinha, “para concertar suas cousas de maneira que ficassem postas em ordem e maneira que todo o cristão tem obrigação fazer”.

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           Debruçado sobre tais testamentos, Machado sublinhou que muitos só se lembravam da morte quando essa se fazia lembrada. O tabelião então encontrava o doente “em cama, ferido a espingarda”, “doente numa rede”, “preso na mão do Senhor, muito mal, com grandes dores”, “enfermo na mão de N.SR. Jesus Cristo e no regaço da Virgem N. Senhora”, “doente de uma flechada que lhe deram os topiões no sertão de Paracatu”.

            Se o achaque permitisse, mulheres recebiam o oficial, “assentadas em seu estrado”. Nesses casos, era melhor nomear a Morte por eufemismos e não invocá-la com insistência: “fazendo Nosso Senhor alguma coisa de mim… Quando deste mundo de misérias e vale de lágrimas sair à honra e reverência sua… Quando esta minha alma do corpo terreno de todo sair… No dia do meu transe”.

            A importância de estar preparado levou à divulgação de manuais como certo Breve aparelho e modo fácil para ajudar a bem morrer o cristão com a recopilação de testamentos e penitenciais, várias orações devotas tiradas da Escritura Sagrada, publicado em Lisboa, em, 1627. O manual, aliás, não escondia no prólogo o seu uso: “naquela hora de aperto os enfermos e suas almas quando o apartamento da vida, as dores do corpo, a lembrança do tempo passado malgastado, os temores do Juízo eterno de Deus, a vista dos Demônios e finalmente, a lembrança da eternidade perturbe de tal maneira a sua pessoa posta naquele estado que com a fraqueza das potências corporais fica uma alma em grande tribulação”.

           A obra tinha seis partes, num verdadeiro itinerário para que o moribundo conseguisse garantir sua entrada no céu:

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“A primeira para avisar ao enfermo que não fez o seu testamento, o faça; a segunda contém um solilóquio para lhe avivar a fé e inflamar a alma com amor divino. A terceira, perguntas de Santo Anselmo com orações muito devotas. A quarta, alfabeto de versos do Saltério de Davi. A quinta, recopilação de palavras sagradas tiradas da Escritura Santa, excelentes contra demônios. A sexta, versos de admirável virtude inseridos neles o nome de Jesus o qual serve para o sexto passo em que a alma se arranca do corpo”.

            O manual continha orientação para ministrar os sacramentos em especial a confissão, além de repreensões com as quais se censurava o moribundo. Um interrogatório particular era desejável no caso de se estar morrendo um “converso” ou cristão novo: para se ter certeza de que não jurara a Maomé, não fizera feitiçaria ou superstição, não comera carne na quaresma ou cometera pecado nefando, não desejara pecar por obra ou casar com alguma infiel. Não se evitavam perguntas íntimas: se o moribundo pecara com alguma mulher prometendo casar com ela e depois não satisfez a promessa. Se pecou com animal ou contra a natureza. Se se deleitou em ver partes desonestas suas ou de outras pessoas e se falou palavras censuráveis. Quais ilegítimos herdariam e quais não herdariam, além de recomendar que se deixasse “alimentos” para os bastardos. Mais uma caridade, afinal… Ao confessar um condenado à morte, o confessor podia fazer sugestões. Afinal, esmolas para remir cativos, casar órfãs, ajudar hospitais, reparar igrejas e mosteiros eram sempre bem-vindas. E terminava consolando o doente com palavras pias e santas. A confissão era considerada “um remédio”. Acreditava-se que, se corpo e alma eram um só, aliviar a alma implicava em aliviar o corpo. Seguindo-se a esta, fazia-se o testamento.

  • Texto de Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Colônia (vol.1)”, Editora LeYa, 2016.

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“O enterro do Conde Oreaz”, El Greco.

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  1. Carlos

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