Partes do corpo, sexualmente atrativas, designavam, entre tantas jovens casadoiras, as mais desejadas. Estes verdadeiros lugares de desejo, hoje não fazem o menor sucesso. Do corpo inteiramente coberto da mulher o que sobrava eram as extremidades. Mãos e pés eram os que mais atraíam olhares e atenções masculinas. Grandes romances do século XIX como “A pata da gazela” ou “A mão e a luva” revelam, em metáforas, o caráter erótico dessas partes do corpo. As mãos tinham que ser longas e possuidoras de dedos finos acabando em unhas arredondadas e transparentes. Os pulsos, quanto mais finos melhor. Ouçamos José de Alencar descrevendo uma de suas personagens, Emília: “Na contradança as pontas de seus dedos afilados, sempre calçados nas luvas, apenas roçavam a palma do cavalheiro: o mesmo era quando aceitava o braço de alguém”. Não apenas os dedos eram alvo de interesse, mas seu toque ou os gestos daí derivados eram revelador da pudicícia de uma mulher. O ideal é que estivessem sempre, no limite do nojo ou da repugnância por qualquer contato físico.
Pequenos, os pés tinham que ser finos, terminando em ponta; a ponta era a linha de mais alta tensão sensual. “Faire petit pied”, era uma exigência nos salões franceses; as carnes e os ossos dobrados e amoldados às dimensões do sapato deviam revelar pertencer a um determinado grupo social, do interior do qual, as mulheres pouco saiam, pouco caminhavam e, portanto, pouco tinham em comum com escravas ou trabalhadoras do campo ou da cidade, donas de pés grandes e largos. Os pés pequenos, finos e de boa curvatura eram modelados pela vida de ócio, emblema de “uma raça”, expressão anatômica do sangue puro, sem mancha de raça infecta como se dizia no século XVIII.
Circunscrita, cuidadosamente embrulhada no tecido do sapato, essa região significou, muitas vezes, o primeiro passo na conquista amorosa. Enquanto o príncipe do conto de fadas europeu curvava-se ao sapatinho de cristal da Borralheira, entre nós, os namoros começavam, por uma “pisadela”, forma de pressionar ou de deixar marcas em lugar tão ambicionado pelos homens. Tirar gentilmente o chinelo ou descalçar a “mule” era o início de um ritual no qual o sedutor podia ter uma vista do longo percurso a conquistar. Conquista que tinha seu ponto alto na “bolina dos pés”, afagos que se trocavam nesta zona tremendamente sensível.
Os pés enlouqueciam os homens. Eram o “fetiche” da época. Corruptela do português “feitiço”, a palavra designava a operação que consistia em focar numa parte do corpo – o pé, a nuca – ou numa coisa- meia, liga, soutien – o ser desejado. O pé, ou outra zona ou objeto, eram sentidos como uma promessa de gozo ou de posse do corpo inteiro. Paixões originais, excêntricas e conturbadas nasceram em torno dessa extremidade, inspirando a crônica da época. Nas suas Memórias da Rua do Ouvidor, Joaquim Manuel de Macedo relembra a paixão do ruivo comerciante inglês, Mister Williams, pela provocante costureira francesa, Mademoiselle Lucy, no início do século XIX. O herói da história é, pois, o pé. Depois de alguns arrufos capazes de apimentar o romance, Manuel de Macedo nos informa: “O inglês estava furioso; mas apesar da fúria, na lembrança lhe ficara o pé de Mlle. Lucy. Não era pé verdadeiramente francês, era-o antes de espanhola, ou melhor, de brasileira: pé delgado, pequenino e de suaves proporções. Realmente Williams não tinha sapatinhos para aquele pé mimoso na sua loja de calçado inglês. E a convicção de que não havia miss, nem lady, que não havia, enfim, inglesa que tivesse pé como aquele que Mlle. Lucy mostrara, exarcebava a cólera de Williams. Mas o lindo pé da costureira francesa ficara na memória, e encantadora e infelizmente representado nu, branco, delgado, pequenino e delicado na imaginação do pudico e severo inglês…”
O culto ao pé era uma devoção poética e erótica naqueles tempos. Alvarez de Azevedo, descia de sapateiro a sapato: “meu desejo era ser o sapatinho que o teu mimoso pé no baile encerra”. José de Alencar, em “A Pata da Gazela”, datado de 1855, devaneava embevecido depois de ver num baile certa dama que dançava “roçando apenas a terra com a ponta de um pezinho mimoso, calçado com o mais feiticeiro sapatinho de cetim branco”; “um bonito pé é o verdadeiro condão de uma bela mulher! Nem me falem em mãos, em olhos, em cabelos, à vista de um lindo pezinho que brinca sob a orla de um elegante vestido, que coqueteia voluptuosamente, ora escondendo-se, ora mostrando-se a furto. Se eu me quisesse estender sobre a superioridade de um pé, ia longe; não haveria papel que me bastasse”.
O pé significaria a substituição da genitália, como proporia Karl Abraham, cinquenta anos depois, em estudo sobre o fetichismo do pé e da roupa de baixo? Sabedoras de que seus pés atraíam olhares, as mulheres esmeravam-se em exibir seus sapatos: coloridos, bordados ou em seda. Saber mover a ponta da saia ou da capa com habilidade e graça era uma arte. Que o diga a Condessa de Barral, paixão de D. Pedro II. Quando a senhora de engenhos baianos adiantou-se para cumprimentar o par imperial pela primeira vez, reza a lenda que chegou perto da perfeição. O imperador que vira tantas reverências na vida, as desajeitadas, as esbaforidas, as pernósticas, encantou-se com a obra de arte de Luísa de Barral. Ela deu ao seu caminhar um movimento concêntrico e harmonioso como uma serpente sobre a grama. Anjo ou demônio? Nesta ondulação graciosa, difundia um perfume conhecido como Brisa de Paris e avançava o pezinho, modelando o vestido com tanta precisão que excitava admiração e desejo, comprimidos pelo mais absoluto respeito. Era a “genialidade do andar francês”. E o Imperador D. Pedro II se enamorou perdidamente.
- Texto de Mary del Priore.
“Femme à la Jarretière”, de Edouard Manet.
para a patricia