Há autores que sublinham a esquizofrenia do brasileiro, um povo que adora e, ao mesmo tempo, repudia a sua vocação mais escancarada e libertina. Povo irreverente que tanto adora sexo quanto falar dele, mas ao mesmo tempo não consegue se desvencilhar de um ranço moralista e extremamente conservador que, ainda insiste em afirmar que tudo o que se refere a sexo é sujo e pecaminoso, e valoriza o sofrimento em detrimento do prazer. Mas com uma história de tanta repressão, não é difícil entender as razões para o moralismo. E outro lado?
Vamos observá-lo, sobretudo, em determinados momentos: festas populares, danças e músicas. Estrangeiros sempre olharam tais manifestações com desprezo. Sobretudo quando nelas, as mulheres se mostravam fora do comportamento pudico exigido na época: braços para o alto, pernas e bocas abertas. “Dança obscena”, feita de “volúpias asquerosas” ou “febres libertinas”, era como se identificava tais momentos onde a sensualidade levava a melhor. Não escapava o gingado de mulatas e negras capazes de atrair os homens, brancos ou negros, “com suas formas sedutoras e o cheiro de suas axilas”. Tais cenas afastavam o “povo” do caminho de moralidade exigido pelo comportamento burguês, já sacramentado na primeira metade do século XX. É óbvio que nem todos os segmentos achavam que dançar, suar e brincar eram manifestações de atraso. E passavam longe do projeto de tornar o Brasil numa outra Europa.
Tanto o Carnaval quanto as festas religiosas convidavam a excessos onde a sexualidade não se escondia. Por exemplo, a festa de Nossa Senhora da Penha, no Rio de Janeiro, segundo o capelão da Irmandade: “transformava-se todos os anos em bacanal vergonhoso aviltado por crimes hediondos e desordens abomináveis”. Era nas faldas do morro escarpado, sobre o qual repousa o templo, que as pessoas iam “não levadas pela fé – queixa-se o padre – mas para dar livre e impudica expansão ao libertinismo repugnante”. Sexo e fé não rimavam. A imprensa criticava o que se considerava “verdadeira bacanal da Grécia ou Roma Antiga”.
O Carnaval também colocava em cena a sexualidade posta de lado, no restante do ano. A Praça Onze, no Rio de Janeiro, ponto alto do encontro de camadas populares promovia uma festa de “gritos e urros”, segundo observadores, ao som de cuícas e pandeiros, onde morenas requebravam “como gatas, felinas e maliciosas, tentando branco e preto, louro e moreno, dançando e rodopiando”, descrevia o jornal O Radical em 1933. Não escapou a Graça Aranha, escritor e diplomata, idealizador da Semana de 22 em São Paulo, as diferenças entre o carnaval de rua e aquele dos clubes fechados. No primeiro, triunfava a negra e a mulata: “Fura a imobilidade um grupo de baianas, dançando, cantando, saracoteando a grossa luxúria negra, seguidas por gorilas assanhados de beiços compridos, tocando pandeiros, pulando lascivos”.
Já nos bailes fechados, atos abomináveis se multiplicavam. Éter e cocaína rolavam. Mulheres, passando dos 50 atracavam-se com “rapazelhos de 18”. Noivas esqueciam o compromisso e pulavam nos braços de outros. Não faltava o choro envergonhado da mocinha de boa família, apalpada ou espalmada. Problema dela, afinal estava vestida de “gigolette”, prostituta parisiense das mais reles. A poetisa Cecília Meirelles explicava a opção da fantasia que revelava mais do que escondia: “senhoras tranquilas sofrem silenciosamente o ano inteiro só com a esperança de aparecerem no carnaval, vestidas de gigolettes”. Cronistas acusavam a promiscuidade reinante nos melhores ambientes, levando senhoras casadas a se comportarem como prostitutas. A revista Fon-Fon afirmava:
“meninas pudicas que não fumam, não bebem, não vão se quer sozinhas ao cinema, nos dias de carnaval, entram num café barato como qualquer homem, bebem com um simples desconhecido, praticam toda a espécie de loucura, satisfazem a todos os desejos de liberdade”. Já as esposas “que vivem para os filhos”, essas podiam ser encontradas no High-Life, no Bola-Preta…”.
Nos anos 50, a cobertura de revistas como O Cruzeiro sublinhava as transgressões femininas. “O movimentado carnaval de três garotas, os bailes, as festas, as brincadeiras e o que aconteceu quando elas resolveram galgar no Trono de Sua Majestade Momo” era título de matéria fartamente documentada com fotos em que, fantasiadas de dançarinas de can-can, com saias curtíssimas, moças posavam em todas as posições. Outra reportagem tinha como tema a farta difusão de beijos durante as festas de Momo. O título era “Beijos no Carnaval” e o autor explicava:
“O caso é que no Carnaval o beijo impera livremente. Todos, ou quase todos se beijam. Não há malícia creiam. A hipnose musical e os efeitos do álcool agem profundamente na personalidade de cada um. Parece que todos ficam mais simples, mais espontâneos. E beijam. Principalmente nos bailes. Beijos roubados, beijos apaixonados, beijinhos, beijos espetaculares. É o amor. É o retorno à simplicidade. Não procurem o lado escandaloso, nestas fotografias. O que há aqui é vida. Vida em uma das suas mais ricas manifestações.”
E seguiam-se fotos e mais fotos de beijos…
O carnaval era visto como uma festa perigosa, depravada, na qual “as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e inútil, a honra uma caceteação, o bom senso uma fadiga”. O dramaturgo e ator, Mario Lago, em suas memórias, mencionou os namoricos e coisas “mais consequentes” que nasciam nesses dias. O desejo, sobretudo o feminino, engessado pelos bons costumes durante do ano, explodia nas fantasias e comportamentos espontâneos. Era “sem vergonhismo” puro, no entender de alguns. Caminhada para a liberdade, no de outros.
A música também assinalava transformações nos comportamentos femininos, registrando o estarrecimento masculino diante de condutas que rompiam com valores tradicionais. O papel “superior” do macho estava sendo questionado. Eis porque multiplicavam-se as composições sobre a mulher que renunciava ao lar, para emancipar-se: “Good-bye, meu bem” gravada por Raquel de Freitas ou “Dona Balbina”, por Carmem Miranda são bons exemplos. E os homens não ficaram de braços cruzados. A crítica feroz à liberação feminina, usando como alvo os cortes de cabelo, a redução do tamanho dos vestidos e do uso da maquiagem veio na forma de composições como as que fez Francisco Alves com “Tua saia é curta” ou “Futurista”. Em “Se a moda pega” ou “Cangote raspado” a queixa é contra moças que expunham a nuca aos rapazes, graças ao corte “à la garçonne”. Recusa ao namoro ou ao casamento? Frieza e maldade da nova mulher que emergia entre os anos 30 e 40. O resultado de tanta “leviandade”, segundo os compositores, era o abandono e a solidão.
Mas as mulheres já tinham suas defensoras. A escritora Ercília Nogueira Cobra foi uma delas. Escrevendo contra a submissão na qual foram sempre colocadas, reagia:
“Os homens no afã de conseguirem um meio prático de dominar as mulheres, colocaram-lhe a honra entre as pernas, perto do ânus, num lugar que, bem lavado, não digo que não seja limpo e até delicioso para certos misteres, mas que nunca poderá ser sede de uma consciência. Nunca!! Seria absurdo! Seria ridículo, se não fosse perverso. A mulher não pensa com a vagina, nem com o útero”.
Presa e interrogada, várias vezes, durante o Estado Novo, a paulista de Mococa escandalizou ao lançar suas contribuições para as letras brasileiras: “Virgindade anti-higiênica: preconceitos e convenções hipócritas” e o romance “Virgindade inútil: novela de uma revoltada”. Considerada uma anarquista “ameaçadora” aos bons costumes, Ercília discordava da visão conservadora de então. Defendia a educação feminina como forma de evitar a prostituição de meninas pobres. E mergulhava fundo na questão, revelando, por exemplo, que a falta de expressão sexual livre, entre as casadas, terminava por dobrá-las aos desejos dos maridos. Para as solteiras, restava à masturbação, exclusiva forma de preservar este “bem inestimável”: a virgindade, único passaporte válido para o casamento.
-Mary del Priore.
O carnaval era o momento de liberar-se da repressão.
Prezadas e prezados, já peço aqui humildes desculpas pelas intromissões que farei em nome dos envolvidos na construção do texto e da crítica produzida. Peço desculpas pois farei colocações em defesas de ambos os pontos de vista por que acredito que sejam expressões vívidas da construção que aqui temos. Participar aqui é legitimar a reflexão que aqui se pretende fazer.
Li o texto de Mary Del Priore sabendo exatamente que segurança tenho de sua compreensão e o quanto é, para mim, um escritora que produz História e uma historiadora que produz escritos deliciosos de ler. Nunca escondi meu fascínio pelo trato que a mesma tem com as palavras. O intimismo em que toca, sobre vidas reais, palpáveis, reconhecíveis, é o fio condutor de seus interesses, e, de certa forma, dos interesses de seus leitores. Eu entendo seu texto.
Mas entendo, então, a crítica em formato de provocação, da leitora Celina, que trás a tona os perigos dos mesmos tratos que fazemos com as palavras. Ontem eu li o texto de Natania Nogueira e também me deparei com o uso de afrodescendente como termo substituto de negro, eventualidade usada por muitos no trato com a palavra e que pode, realmente, se entender como estratégia do “politicamente correto”. Uma leitura igualmente rápida pode gerar o mesmo incômodo com o termo esquizofrenia usado no texto acima.
Celina tem razão. Ambos os termos podem causar descontentamentos nos seus usos e abusos, mas não acredito que sejam, os casos aqui, exemplos disso. Obviamente falo de uma posição que tenho de proximidade com ambas as autoras para compreender seus usos sem abusos.
Começo pelo caso de Natania, que usa o termo como uma referência direta com a obra que ela cita, sem fazer julgamentos de valores para com o problemático termo. Hoje é comum usar “afro” alguma coisa para se referir a culturas que possuem na cor da pele de seus realizadores uma identidade específica. Comete-se o erro de se relacionar cor da pele com lugar físico, com nação, com espaço geográfico, como se a cor da pele deslegitimasse amplas nacionalidades ou pertencimentos, mas, claro, os que fazem uso do termo o fazem com as melhores das intenções. Mas não é o caso do texto de Natania, onde reparei o uso e que, se não tem uma crítica direta ao abuso, de minha parte, é por que não o encontro.
No texto na Mary a solução é ainda mais simples, pois faço o mesmo exercício partindo de um pressuposto das relações que a mesma tem com questões de gênero e cor. Sou professor de normas técnicas, fundamentalmente no que se refere a construção textual, e vejo a prática segura da Mary Del Priore em aspear a palavra esquizofrenia no título de texto. Isso já demonstra que o uso da palavra é legítimo, não é um abuso. Trata-se de uma metonímia útil na compreensão do que se pretende refletir no texto, deixando claro que não se trata de um ponderamento sobre qualquer transtorno mental, mas uma expressão de imaginários e discursos específicos.
Encerro meu texto, então, agradecendo a Natania Nogueira pela gentileza em se produzir um texto sobre um curioso livro, agradeço a Mary Del Priore pela dose periódica de história e humanidade, e agradeço a Celina por nos trazer os perigos com as palavras, principalmente quando tratamos de um ponto de vista confortável de pensadores. E que essas expressões humanas, da sexualidade e dos desejos, das festas e suas práticas sociais, enfim, do pensar esse passado em conjunto, guiem nossas críticas.
Excelente texto, e este é um tema que merece ser abordado sempre! Parabéns
Prezada Celina
As autoras dos textos possuem uma formação acadêmica invejável! A Mary Del Priore, se vc não sabe, possuí dois pós doutorados.Tenho certeza que ambas sabem muito bem distinguir os termos utilizados em seus texto.
É apenas uma provocação. Para refletir sobre o uso de certas expressões.
Segunda vez que comento hoje por situações de certa forma semelhantes: primeiro a expressão afrodescendente usada repetidas vezes no artigo anterior por uma questão “politicamente correta”, embora destoante. Agora abusam do termo “esquizofrenia”. Como seria para um portador do transtorno mental ver o nome de sua doença usado levianamente? Acaso isso não aumentaria o estigma?
Dois pesos e duas medidas?
Cara Celina, se você leu o texto com um mínimo de atenção deve ter compreendido que o termo “esquizofrenia” é usado de forma figurada. Dizer que a palavra foi usada de maneira leviana é uma acusação sem qualquer fundamento. Em nenhum momento houve desrespeito em relação aos portadores deste transtorno mental. A comparação entre este artigo e o excelente texto “História e Memória do Afrodescendente”, de Natania Nogueira, não faz o menor sentido – são autoras diferentes que tratam de temas completamente diversos.