O tema é polêmico e mexe com vários tabus: agressões de mulheres contra homens. Sim, isso existe. Obviamente, em índices muito inferiores aos de violência doméstica contra o gênero feminino, mas maridos e companheiros também podem ser as vítimas. Muitas vezes, a agressão ocorre como uma reação de mulheres que sofrem abusos: um dia, após serem agredidas, às vezes por longos períodos, elas reagem de forma inesperada. Existem também casos, mais raros, em que a mulher domina e subjuga o homem física e emocionalmente, agredindo-o também fisicamente. Esse tipo de ocorrência tem atraído a atenção da mídia. Não há dados sobre violência doméstica contra homens no Brasil. Em Portugal, cerca de 14 homens prestam queixa todos os dias. Países como Inglaterra, Estados Unidos e França contam com serviços de atendimento às vítimas do gênero masculino.
A violência doméstica contra os homens e o grande constrangimento que existe em abordar o tema têm suas raízes no modelo de sociedade em que vivemos. Baseada no patriarcalismo, na misoginia e no machismo, esse ideal que nos foi imposto é nocivo a homens e mulheres. Assim, não faz sentido a alegação dos críticos ao feminismo de que as feministas ignoram tal fenômeno, muito menos de que o fato de mulheres serem as agressoras invalidaria os fundamentos do movimento. O feminismo, longe de ser o contrário do machismo, busca a igualdade de direitos. Um dos grandes problemas com relação a esse tipo de violência é que os homens têm dificuldades até mesmo em admitir que foram agredidos, além da vergonha de fazer a denúncia. “Homem que apanha de mulher???” O julgamento da sociedade é implacável. Há pessoas violentas de todos os gêneros, mas como nossa cultura associa a vítima à fraqueza e à covardia é muito complicado para o homem se colocar nessa posição de vulnerabilidade.
Se à mulher foi imposto, ao longo da formação da sociedade brasileira, o papel de mãe, esposa, amante e filha obediente, sempre dócil e frágil, ao homem foi impingido o papel de pessoa viril, forte, corajosa. A agressividade deles sempre foi aceita e até estimulada. Fraqueza é coisa de mulherzinha. Não é assim que muitos pais, mães e professores ainda falam com os meninos? No século XIX, havia uma grande preocupação em diferenciar homens e mulheres, na forma de comportar-se e de se apresentar. As roupas destacavam a formas femininas, com suas anquinhas e espartilhos; os homens passaram a adotar o estilo austero, com cores escuras, bengalas e cartolas. Lugar de mulher era em casa, já o espaço do homem era o público. Homens delicados ou afeminados eram alvo de ridicularização, eram os “antifísicos”, doentes, fracos… Os esportes mais valorizados eram esgrima, boxe, tiro, montaria, e o futebol. Tudo que fosse ligado ao gênero feminino, a não ser o casamento e a maternidade, era desqualificado.
Os modelos idealizados quase nunca correspondem à realidade. E assim foi na História do Brasil. Desde os tempos coloniais, as mulheres foram chefes de família, lutaram pela sua sobrevivência e dos filhos. Nem sempre foram vítimas, nem sempre aceitaram o lugar que lhe foi imposto pela sociedade. Muitas vezes, reagiram aos maus tratos, de forma pacífica, apelando ao Estado e a Igreja, separando-se dos companheiros que não mais lhes agradavam; ou de forma violenta, utilizando todos os meios para se libertar. Os motivos eram variados: reação às agressões, ciúme, vingança, ambição, desejo de liberdade. Sim, as mulheres podem ser os algozes. Mary del Priore, em “História do Amor no Brasil”, nos conta que, em outubro de 1795, numa relação de presos culpados por morte na cadeia do Rio de Janeiro, se encontravam quatro esposas que tinham eliminado seus maridos. Na capitania do Maranhão, em 1804, D. Maria da Conceição foi condenada por ter mandado matar e assistido “à morte aleivosa” de seu marido. Ela vivia “em pública e adulterina devassidão” com o co-réu do crime, sobreiro e caixeiro do marido “com quem se ajustara a casar por morte deste”. Em maio de 1816, foi a vez de prenderem no Rio de Janeiro certa Joaquina Marinha de Albuquerque que matara o seu cônjuge com uma corda, juntamente com um cúmplice. Tentativas de envenenamento, várias. O uso do vidro moído misturado aos alimentos era corrente.
Na época, acreditava-se que a mulher era escrava de suas “paixões”. Diferentemente do homem, que se guiava pela racionalidade, a mulher era dominada pelas emoções, daí a necessidade de mantê-la sob rígido controle. No final do século XIX e início do XX, a medicina passou a se preocupar com a “histeria” feminina, tentando “curar” as mulheres vítimas de suas próprias emoções. A historiadora relata o exemplo da prostituta Anita Rodrigues que atingiu seu amante com vitríolo, em 1915. Tida por mulher ordeira, que tinha pelo “ofendido grande afeição”, Anita se vê explorada e, sob ameaça de abandono, por não conseguir dinheiro suficiente para o seu cafetão, César Virtulli. Segundo o advogado de defesa, isso lhe teria despertado “a ferocidade do ciúme pela tirania da paixão”, causando loucura momentânea. É interessante percorrer, nas linhas do processo, a forma como o amor podia tornar-se uma arma, nas mãos de “uma pobre artista atirada ao comércio do amor”.
Paixões contrariadas podiam obscurecer a razão e eis como Anita, “abandonada por seu amante, insensível a todas as tentativas de reconciliação, ferida em seu amor próprio, impelida pelo ciúme, concebeu uma reação. A dor e o desespero teriam lhe lançado em seu espírito fraco e doentio, a ideia fixa da vingança que transmigrou do cenário fisiológico para o patológico, que transformando-se em ideia delirante explodiu na noite de 30 de maio, impelindo seu braço hesitante ao vitriolamento do amante”. Depois de longos debates, a prostituta foi punida com prisão por dois anos. Foi considerada vítima de uma paixão erótico-patológica. Como ela, outras tantas mulheres atiraram, esfaquearam e mataram seus amantes, companheiros, concubinos, lembra a autora.
Nessa época, entendia-se que a mulher deveria ser tolerante com as infidelidades do marido. Afinal, era “coisa de homem”, enquanto a fidelidade era um dever da esposa. As revistas femininas, na virada do século XIX para o XX, alardeavam a importância do amor para o sucesso do casamento, porém, o ideal era aquele amor tranquilo, regrado e baseado no companheirismo. A paixão continuava a ser temida. Nas páginas das publicações voltadas para mulheres, multiplicavam as fórmulas impressas sobre “como garantir a felicidade para sempre”. A novidade era o conceito de “lar” associado ao casamento: casa limpa, bem cuidada, sem luxo nem muitas despesas. A Revista Feminina publicava uma coluna intitulada “o cardápio do meu marido”. Em certo artigo o articulista alertava: “E se quiserdes completar a vossa felicidade, o ciúme, varrei-o para sempre das vossas casas, dando de quando em vez, ao vosso marido, um dedinho de liberdade”. Se todos cumprissem seu papel, não haveria tragédias, pensava-se. Mas a realidade era bem diferente. A violência doméstica existia, porém, só se falava dela quando culminava em ocorrências graves. Então, ela invadia as páginas dos jornais…
A violência de mulheres contra homens não é novidade (bem como o contrário, obviamente). Se hoje as mulheres estão cada vez mais confiantes para denunciar os maus tratos, os homens ainda sofrem calados, com medo do estigma de covardes ou fracos. A violência doméstica deve ser combatida de todas as formas, e uma delas é questionar esses papéis sociais rígidos que trazem tanto desgosto a homens e mulheres. E é preciso denunciar sempre que ela ocorrer, independente do gênero da vítima e do agressor: o silêncio é um passo em direção aos finais trágicos.
Texto de Márcia Pinna Raspanti.
Imagem: BBC Mundo.
SAIBA MAIS:
A violência, ao que se pode perceber nasce juntamente com o homem, independe ser ele selvagem ou civilizado.