Chega desse “mimimi feminista”?

Fiquei sabendo de uma história que me deixou chocada. Não é pelo ineditismo do enredo, mas pelo fato de que a vítima ser conhecida. Vamos aos fatos. Uma universitária, na faixa de 20 anos, foi a uma festa na faculdade de uma amiga. Chegando lá, um rapaz começou a assediá-la. Ela não estava interessada e deixou isso claro. O garoto, então, começou a agredi-la verbalmente. “Você  deve ser sapatão! Ou é daquelas feministas irritantes??”, gritava. Ela pediu que ele a deixasse em paz. Então, em meio a centenas de pessoas, o jovem desferiu um tapa no rosto da menina! Com a face vermelha e dolorida (mas, sem chorar, ela quis destacar), procurou o segurança que a aconselhou a ir embora com as amigas, para “evitar confusão”. Foi o que elas fizeram, com medo de passarem por coisa pior.

Esse humilhante acontecimento, infelizmente, não é um caso isolado. É cada vez mais comum que homens, ao serem rejeitados em baladas, reajam xingando ou mesmo agredindo as mulheres. O mais preocupante é observar que os jovens estão reproduzindo esses antigos comportamentos machistas. No ano passado, fomos desagradavelmente surpreendidos com denúncias de abuso sexual, estupro e constrangimento de estudantes mulheres (e também de homossexuais), em vários cursos e instituições de ensino superior.

Esse tipo de atitude está intimamente associada às nossas raízes patriarcais. A mulher era vista como ser inferior, cuja missão maior era servir ao homem. No Brasil Colônia, as mulheres brancas e de classe social mais alta tinham como função casar-se e dar herdeiros ao marido; as escravas deveriam trabalhar e servir de objeto sexual para seus senhores, quando eles assim quisessem; as mais pobres, brancas ou mestiças e “solteiras” – o que na época significava não ter nenhum homem que as protegesse (pai, marido, amante, irmão) – eram rotuladas de “mulheres públicas”, e deviam ficar agradecidas por qualquer ajuda financeira que recebessem em troca de seus corpos ou serviços.

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Em outras palavras, às mulheres sempre foi negado o direito de escolha. Mesmo com as mudanças do início do século XX, quando elas conquistaram lentamente seu lugar no mercado de trabalho, e o direito a votar e ser votadas, a vida cotidiana pouco se alterava. Além de ajudar os maridos com seus ganhos, esperava-se que as mulheres fossem boas donas de casa e que se responsabilizassem pela educação dos filhos. E que fossem “direitas”, é claro. Sexo ainda era coisa de homem.

Com a chegada da pílula anticoncepcional e da revolução sexual, as mulheres começaram a expressar seus desejos, a buscar uma vida sexual em que deixassem de ser apenas objetos para satisfação do homem. Hoje, falamos abertamente de sexo, fazemos nossas escolhas, temos direito a ter uma vida social independente, queremos ter sucesso em nossas carreiras. Mas, pagamos um preço alto por isso. Somos julgadas por nosso comportamento. Os homens acham que estão nos fazendo um favor ao “ajudar” nas tarefas domésticas. E o que é mais triste é que muitas mulheres engrossam o coro machista e inquisidor.

Outro dia li um texto que dizia “não importa o que você faça, em algum momento de sua vida, você será chamada de piranha, vagabunda ou coisa do gênero”. E é verdade. Todos estão sempre prontos a nos julgar com severidade. “Foi promovida? Só pode ter ‘dado’ para alguém. Foi agredida? Alguma coisa fez para merecer isso. Está reclamando por ser assediada? Quer aparecer, isso sim. O marido a traiu? Foi burra, não cuidou dele como se deve. É infeliz no amor? Também, rodada com é. Não quis sair comigo? Reprimida. Sapatão. Interesseira, só sai com cara rico”. E por aí vai…

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Na minha avaliação, já passamos da fase de simplesmente reivindicar a liberdade sexual. Acho que hoje passamos a ter a obrigação de estarmos sempre disponíveis sexualmente. “Não queriam “dar”? Agora, aguentem” – parece ser a mensagemO que incomoda não é a mulher que tem vida sexual ativa, mas a mulher livre, aquela que escolhe e não espera ser escolhida. A mulher que tem o poder de dizer “sim” e de dizer “não”. Sim, a b…tem poder, como diz o funk (na verdade, sempre teve). Mas, queremos mais. Sexo não é mercadoria de barganha, muito menos, nossos corpos. Queremos dispor deles da forma que mais nos agrade e não da maneira que nos seja imposta.

Vivemos dias de muita violência contra as mulheres. Talvez, porque estamos tentando dar mais um passo em direção da igualdade e da autonomia. A reação pode se manifestar fisicamente – com tapas, surras, estupros – ou mais sutil, sob a forma da ironia, da desqualificação, da difamação, da humilhação, do assédio. Não sei se nossa situação atual é tão mais confortável que das nossas avós e bisavós. Caminhamos muito, é verdade, mas ainda falta um longo e difícil caminho a percorrer.

E não, não é mimimi feminista, nem vitimização. Não aceitamos mais esse tipo de piadinha. Aquela menina não merecia aquele tapa. Nem nenhum tipo de agressão ou xingamento. Ela também não merecia ter de deixar a festa por causa do agressor, e nem a dor, a humilhação e o medo. Chega de intimidação.

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– Texto de Márcia Pinna Raspanti. 

 

Edvard Munch-Nu

“Nu”, de Edvard Munch.

 

4 Comentários

  1. milene
    • Márcia
  2. Clarissa loureiro
    • moises

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